O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, maio 24, 2002

CARTAS PARA ALÉM DO TEMPO



Continuação da carta de Fernanda de Castro a Cecília Meireles

A resposta vinha imediatamente e assim, por culpa tua, estava sempre em dívida contigo porque pelas razões expostas, não escrevia na volta do correio, o que me valia dias depois, uma série de injúrias epistolares. Imagina tu que um dia chegaste a dizer-me, e eu acreditei, “se passarem mais de dez dias sem que tenhas notícias minhas, a razão é simples: não tive dinheiro para os selos.
Sabia que lutavas desesperadamente para que não faltasse às tuas filhas o necessário nem mesmo o supérfluo. Em dado momento o teu marido teve uma terrível depressão: não podia trabalhar, passava os dias sentado numa cadeira com a cabeça entre as mãos, não queria sair de casa nem ver os amigos, nem sequer receber os que o procuravam.
- “É horrível, Fernanda, agora tenho quatro filhos e o mais velho dá-me mais trabalho de que as três filhas juntas”. -
A primeira vez que vieste a Portugal, vieste convidada pela S.P.N. (...)

O nosso encontro foi aparentemente cordial mas não efusivo, quando na realidade os nossos corações palpitavam e os nossos olhos encontraram-se com uma ternura que, sem exagero, nos prendeu uma à outra para toda a vida. Tu costumavas dizer que éramos parecidas e efectivamente tínhamos algumas semelhanças: a cor da pele, os dentes pequenos e muito brancos, os olhos claros, azuis os meus, verdes os teus, os cabelos escuros, mas, sobretudo, tínhamos almas sensíveis e um amor comum à Poesia.
O Fernando o teu marido (o pintor português Correia Dias), vinha ainda doente, taciturno, pessimista, inadaptado. Tu fazias de conta que não percebias e falavas com ele como se tudo corresse às mil maravilhas, consultando-o para tudo, não aceitando convites, sempre disposta a suportar pacientemente as suas teimosias e as suas caturrices. Logo no primeiro dia disseste-me:
-“A minha cruz é pesada, mas tenho de aguentar porque ninguém tem culpa de estar doente.” (continua)

Sem comentários: