O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, maio 26, 2002



CONTINUAÇÃO “DE CARTAS ALÉM DO TEMPO”

de Fernanda de Castro a Cecília Meireles

(...)
Terminada a tua primeira visista a Portugal, voltaste para o rio de Janeiro nem mais pobre nem mais rica, ou antes mais pobre, pela desilusão de Penajoia pois esperavas que o reencontro com a família tivesse dulcificado a alma atormentada do Fernando. Voltaste para o Rio e recomeçou a tua vida dura, às vezes difícil, superior à tua força que contudo, era imensa. Falavas-me muitas vezes das tuas filhas e dizias-me:”são fortes, bonitas, “vorazes” e estudam bem. Que mais posso desejar? Sim, desejo ainda e isto é o principal, que sejam felizes. Serão? Espero que sim.”
Outras vezes confessavas:”Há dias em que chego a casa tão cansada de mim e dos outros, sobrtudoi de mim que me atiro deseperada para cima do meu sofá azul, a coisa mais bonita que tenho em casa”.

A respeito do Fernando falavas pouco mas, de vez em quando, numa ou noutra frase, eu ouvia a tua queixa silenciosa, a tua voz secreta. Com o tempo, Cecília acabei por compreender o mal do teu marido. Por razõees incompreensíveis que têm a ver com o fado, o destino, a sorte, o Fernando não conseguiu no Rio o trabalho regular necessário para manter a casa, pagar os colégios, aliviar-te a ti, que mal podias ler, escrever, quanto mais pensar na tua Poesia. E isto que te atormentava a ti atormentava-o mais a ele. O Fernando tinha, como pintor e sobretudo como desenhador, bastante talento mas, talvez devido ao seu feitio tristonho e cismático não conseguia abrir o seu caminho a que tinha direito, por razões fàcilmente compreensíveis: isolava-s, fugindo dos cafés, das exposições, das redacções dos jornais, de todos os lugares enfim onde se arranjam amigos e clientes. Sentia-se frustrado e cada dia se tornava mais amargo e, por vezes sarcástico, o que não melhorava a situação.

Um dia recebi um bilhete lacónico em que me dizias:
“O Fernando morreu. Agora sei que está em paz, que não sofre e isso ajuda-me a continuar o meu trabalho, cada vez mais necessário. Não me queixo, aceito sem revolta mais esta provação e agora todo o meu tempo livre, por sinal bem pouco, consagro-o às minhas filhas. Nem sequer me apetece ler, quanto mais escrever”.
Foi mais ou menos isto que me disseste no cartão.Mas, tempos depois, alguém me contou com pormenores a tragédia que foi essa morte, tragédia de que não quero falar pois não creio que seja benéfica a recordação desses dolorosos momentos . (...) ( Continua)

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