O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, julho 29, 2004

A ESCRITA E A SOLIDÃO

“Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável, em que, exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.
Mas é uma solidão que necessita de ser defendida, que é o mesmo que necessitar de justificação. O escritor defende a sua solidão, mostrando o que nela e unicamente nela, encontra.

Se há um falar, porquê o escrever?

Mas o imediato, o que brota da nossa espontaneidade, é algo pelo qual inteiramente não nos fazemos responsáveis, porque não brota da totalidade íntegra da nossa pessoa; é uma reacção sempre urgente, premente. Falamos porque algo nos compele e a ordem que nos é dada vem de fora, de uma armadilha em que as circunstâncias pretendem caçar-nos, e a palavra livra-nos dela. Pela palavra tornamo-nos livres, livres do momento, da circunstância assediante e instantânea. Mas a palavra não nos recolhe, nem, portanto, nos cria e, pelo contrário, o muito uso que dela fazemos produz sempre uma desagregação; vencemos pela palavra o momento e depois somos vencidos por ele, pela sucessão dos momentos que vão levando consigo o nosso ataque sem nos deixar responder. É uma contínua vitória que, por fim, se converte em derrota.

E dessa derrota, derrota íntima, humana, não de um homem particular, mas do ser humano, nasce a exigência de escrever.
Escreve-se para reconquistar a derrota sofrida sempre que falámos longamente.”


María Zambrano (1904-1991)
A Metáfora do Coração (e outros escritos)

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