O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, janeiro 03, 2009

UM INTERESSANTE EXCERTO


O MUNDO É ORACULAR PARA AQUELE QUE SE PÕE À SUA ESCUTA

"Para o pensamento que dominou os últimos dois milénios, a afirmação acima não soa como uma verdade, salvo para os poetas, artistas e algumas almas "empedernidas". Isso porque, ao mundo em busca de "desenvolvimento", foi vital substituir essa visão por outra mais pragmática, onde natureza e tempo se transformaram em dinheiro, onde o ser passou a valer pela capacidade de produzir e acumular bens materiais. Dessa forma, não admira que o mundo tenha deixado de ser um oráculo pois, para ser lido, requer uma atitude sensível, disponível, reverente e receptiva.
A receptividade é um atributo do princípio feminino, que vem sendo enfraquecido pelo patriarcalismo, no modo de produção industrial contemporâneo. A rigor, o mundo patriarcal industrializado, ao se instaurar, teve que esvaziar todas as atitudes que conduziam à participação do ser humano na natureza, pois seu imperativo maior tornou-se consolidar uma imagem de poderio humano sobre um mundo exteriorizado e reificado, da natureza subordinada.
Se as culturas arcaicas, com seus ritos e mitos, reactualizavam a obra da criação nas atitudes fundamentais da vida, a urgência desta nova fase imprimiu uma cadência onde não há mais ocasião para qualquer sentimento de união. O religioso, o lúdico, o artístico, o imponderável, enfim, foram desvalorizados e banidos para um plano secundário. O ser humano tornou-se a medida de tudo.
As divindades máximas que antes eram femininas tornaram-se masculinas, subordinadas à potência do homem. E o mesmo aconteceu à terra, ao tempo, à vida. Tudo passou a ser quantificado. A progressiva coisificação da mulher e o esvaziamento do carácter sagrado da natureza acompanharam a supremacia da razão como forma dominante de apreender o mundo. Com isso foram descartados todos os rituais que envolviam os processos de criação, que demarcavam as mudanças do tempo, que nos orientavam e que nos auxiliavam a lidar com as constantes tensões inerentes à vida. Tudo foi engolido pelo projecto civilizatório do desenvolvimento industrial. O mundo foi despojado de todo encantamento. Parafraseando Jung, os lares e as cidades não têm mais as suas divindades protectoras; as cavernas não são mais guardadas por dragões, nem as árvores ou os rios são defendidos por seus espíritos protectores.
E o que foi colocado no lugar destes sentimentos? Nada. Tudo reduziu-se apenas ao cânone da disciplina do mercado, para atender a um consumo imediato. Por isso, talvez seja correto afirmar que a crise que vivemos é, acima de tudo, religiosa e, por extensão, ética. A partir do momento em que abrimos mão de nossas responsabilidades para com a totalidade da vida em benefício apenas de interesses pessoais ou corporativistas, abolimos também nossa capacidade de discernir o mal em nós próprios e passamos a viver sob o tão consagrado lema de que "os fins justificam os meios".
Sob essa bandeira nasceu a ciência moderna, sempre atrelada ao poderio econômico. Para progredir, não transigiu com a natureza, pois seus pressupostos estavam assentados sobre a crença na superioridade humana e sobre a avidez do enriquecimento, mesmo se a realização de suas metas implicasse em exaurir todos os recursos naturais. Para tanto, teve que desrespeitar a Mãe Terra. Desautorizou toda linguagem simbólica que lhe conferia qualquer mistério inacessível à razão. Para violá-la, era imprescindível despojá-la de qualquer carácter sagrado. O mesmo pensamento justificou tanto a dominação da matéria quanto da mulher, transformadas em mercadoria, valendo apenas pelos aspectos atraentes para as normas do consumo.
A título de ilustração, recentemente, num único jornal diário, tivemos dois eloqüentes exemplos disso. Duas mulheres, pacientes de uma mesma clínica de cirurgia estética, sofreram danos irreversíveis em sua saúde, uma chegando a falecer e a outra contraindo complicações cardíacas antes inexistentes. E tudo isso em busca de um ideal de beleza. Não se questiona aqui a busca da beleza. O que está em avaliação é o conceito de beleza, a estrita e estúpida subserviência da mulher às imposições de um esquema já arruinado e a desproporção dos riscos nessa empreitada, como também o flagrante desrespeito aos processos naturais e sagrados do seu corpo.
Há uma coisificação de um valor que deveria ser inalienável, que é o direito de envelhecer, com todos os seus imperativos bio-psico-espirituais. A própria mulher passou a vivenciar seu corpo como produto em exibição num mercado, ficando insensível ao fato elementar de que o envelhecimento do corpo acarreta processos psíquicos interiores que, interrompidos, podem frustrar vivências valiosas. Ela troca, dessa forma, os significados plenos de sua jornada natural por uma imagem falseada e irreconhecível. Se nossa cultura descarta cruelmente a velhice como uma etapa indesejável da vida, e, em consequência, gera angústia e sentimento de abandono, cabe à mulher, em primeiro lugar, determinar aquilo que melhor lhe convém. Mesmo que a pesadas custas. E nós, que um dia renegamos as leis da natureza por parecerem demasiadamente primitivas! Fazemos a nós o mesmo que fazemos à Terra. Mas só agora começamos a nos dar conta desse fato. E é a própria Mãe Terra que nos abre os olhos, quando se rebela e nos mostra que não pode mais tolerar nossa ignorância. É de sua grandeza que vem a nossa cura. Basta que fiquemos à escuta.
Uma Ecologia do Feminino propõe uma nova escuta do mundo e da totalidade do ser. Percorrer o meridiano que sobe desde a terra, na planta dos pés, atravessa toda a coluna vertebral, passando pelo coração e saindo pela cabeça em direcção ao céu. Responder à urgente necessidade de restabelecer o respeito e a religação com nossa Mãe Terra. Reativando a memória ancestral, da qual nos separamos, talvez possamos reatualizar em cada pessoa os processos eternos da criação da vida, fazendo reviver em nosso ser colectivo a vibração matricial do princípio feminino.
A primazia do Ser sobre o Ter poderá inverter os valores patriarcais, rompendo profundamente seus hábitos mentais, afectivos e espirituais. A compreensão da complexidade de nossas relações com a Mãe Terra deve levar-nos a uma reinvenção de novas possibilidades antigas, retomando, em meio a computadores e antenas parabólicas, à ressacralização do mundo.
A ligação com a Mãe Terra e com o Feminino é para ser experimentada por homens e mulheres, numa nova relação amorosa e criadora.
Essa cordialidade (que vem do cor-ação) será esteio para uma nova ética. Como princípio, o nosso lixo indesejável, seja ele de natureza moral, espiritual ou material, não mais será descarregado nas ruas, nem nos rios, nem mesmo mais distante, no espaço sideral. Estaremos cônscios da comunicabilidade de tudo e, com mais responsabilidade, espera-se, faremos melhores opções. E, para o melhor, poderemos sempre estar orientados pela natureza."

( do livro “ O Encantamento do Humano” de Nancy Mangabeira Unger, Edições Loyola, 2000)
Copiado de: http://wwwjaneladaalma.blogspot.com/

1 comentário:

Luciana Onofre disse...

Obrigada!
Este texto é um presente.