O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, junho 19, 2010

EVOCANDO SARAMAGO...


O EVANGELHO segundo SARAMAGO…

FALA MARIA MADALENA:

"De mim se há-de dizer que depois da morte de Jesus me arrependi do que chamavam os meus infames pecados de prostituta e me converti em penitente até ao fim da vida, e isso não é verdade. Subiram-me despida aos altares, coberta unicamente pela cabeleira que me desce até aos joelhos, com os seios murchos e a boca desdentada, e se é certo que os anos acabaram por ressequir a lisa tesura da minha pele, isso só sucedeu porque neste mundo nada pode prevalecer contra o tempo, não porque eu tivesse desprezado e ofendido o mesmo corpo que Jesus desejou e possuiu. Quem aquelas falsidades vier a dizer de mim nada sabe de amor.

Deixei de ser prostituta no dia em que Jesus entrou na minha casa trazendo-me a ferida do seu pé para que eu a curasse, mas dessas obras humanas a que chamam pecados de luxúria não teria eu que me arrepender se foi como prostituta que o meu amado me conheceu e, tendo provado o meu corpo e sabido de que vivia, não me virou as costas. Quando diantes de todos os discípulos Jesus me beijava uma e muitas vezes, eles perguntaram-lhe porque me queria mais a mim que a eles, e Jesus respondeu: "A que se deve que eu não vos queira tanto como a ela?" Eles não souberam que dizer porque nunca seriam capazes de amar Jesus com o mesmo absoluto amor com que eu o amava. Depois de Lázaro ter morrido, o desgosto e a tristeza de Jesus foram tais que, uma noite, debaixo do lençol que tapava a nossa nudez, eu lhe disse: "Não posso alcançar-te onde estás porque te fechaste atrás de uma porta que não é para forças humanas", e ele disse, queixa e gemido de animal que se escondeu para sofrer: "Ainda que não possas entrar, não te afastes de mim, tem-me sempre estendida a tua mão mesmo quando não puderes ver-me, se não o fizeres esquecer-me-ei da vida, ou ela me esquecerá." E quando, alguns dias passados, Jesus foi reunir-se com os discípulos, eu, que caminhava a seu lado, disse-lhe: "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti", e ele respondeu:

"Quero estar onde estiver a minha sombra se lá é que estiverem os teus olhos."
Amávamo-nos e dizíamos palavras como estas, não apenas por serem belas e verdadeiras, se é possível serem uma coisa e outra ao mesmo tempo, mas porque pressentíamos que o tempo das sombras estava a chegar e era preciso que começássemos a acostumar-nos, ainda juntos, à escuridão da ausência definitiva. Vi Jesus ressuscitado e no primeiro momento julguei que aquele homem era o cuidador do jardim onde o túmulo se encontrava, mas hoje sei que não o verei nunca dos altares onde me puseram, por mais altos que eles sejam, por mais perto do céu que alcancem, por mais adornados de flores e olorosos de perfumes. A morte não foi o que nos separou, separou-nos para todo o sempre a eternidade. Naquele tempo, abraçados um ao outro, unidas pelo espírito e pela carne as nossas bocas, nem Jesus era então o que dele se proclamava, nem eu era o que de mim se escarnecia. Jesus, comigo, não foi o Filho de Deus, e eu, com ele, não fui a prostituta Maria de Magdala, fomos unicamente aquele homem e esta mulher, ambos estremecidos de amor e a quem o mundo rodeava como um abutre babado de sangue. Disseram alguns que Jesus havia expulsado sete demónios das minhas entranhas, mas também isso não é verdade. O que Jesus fez, sim, foi despertar os sete anjos que dentro da minha alma dormiam à espera de que ele me viesse pedir socorro: "Ajuda-me." Foram os anjos que lhe curaram o pé, eles foram os que me guiaram as mãos trementes e limparam o pus da ferida, foram os que me puseram nos lábios a pergunta sem a qual Jesus não poderia ajudar-me a mim: "Sabes quem eu sou, o que faço, de que vivo", e ele respondeu: "Sei", "Não tiveste que olhar e ficaste a saber tudo", disse eu, e ele respondeu: "Não sei nada", e eu insisti: "Que sou prostituta", "Isso sei", "Que me deito com homens por dinheiro", "Sim", "Então sabes tudo de mim" e ele, com voz tranquila, como a lisa superfície de um lago murmurando, disse: "Sei só isso." Então, eu ainda ignorava que ele fosse o filho de Deus, nem sequer imaginava que Deus quisesse ter um filho, mas, nesse instante, com a luz deslumbrante do entendimento pelo espírito, percebi que somente um verdadeiro Filho do Homem poderia ter pronunciado aquelas três palavras simples: "Sei só isso." Ficámos a olhar um para o outro, nem tínhamos dado por que os anjos se tinham retirado já, e a partir dessa hora, pela palavra e pelo silêncio, pela noite e pelo dia, pelo sol e pela lua, pela presença e pela ausência, comecei a dizer a Jesus quem eu era, e ainda me faltava muito para chegar ao fundo de mim mesma quando o mataram. Sou Maria de Magdala e amei. Não há mais nada para dizer.


http://caderno.josesaramago.org/


Haveria muito mais a dizer...

Que Maria de Magdala não era uma prostituta OU NINGUÉM sabe ao certo quem ela era ...não porque isso seja bom ou mau, mas porque esse é um conceito posterior ao paganismo e que ganhou uma acepção pejorativa: tornou-se num anátema difundido e enraizado pela tradição católica romana e pela cultura patrista através de SÉCULOS DE INFORMAÇÃO DETURPADA com o intuito de denegrir a Mulher
e Deusa, tirando-lhe o poder do seu sacerdócio.

Maria de Magdala – havia um Templo da Grande Mãe em Magdala - poderia ser uma das últimas sacerdotisas da Grande Deusa, uma iniciadora do seu amor e se iniciava os homens não era por dinheiro, nem se vendia como diz o texto romanceado do autor, que segue à risca a informação do catolicismo; no culto da Deusa faziam-se oferendas nos seus altares, mas por amor à Deusa do Amor. Foi essa cerimónia de iniciação do homem e de revelação da Deusa e a dimensão sagrada do sexo que se tornou num acto vil pelo servilismo ao deus pai da Igreja de Roma...

Se Jesus foi ou não iniciado aos Mistérios da Mãe e da Mulher é coisa que a Igreja de Roma escondeu piamente, excluindo evangelhos e corrigindo outros na missão de excomungar a Mulher, condenando-a num concílio a pecadora, descrita e pintada como penitente por pintores famosos, embora na realidade ela fosse a iniciadora, e neste caso talvez fosse ela a discípula dilecta do Mestre ou até mesmo sua mulher.

José Saramago é um agnóstico, humanista, fiel à doutrina comunista, ao Marxismo Leninismo e por isso não tem acesso ao paganismo nem o aceitaria como realidade histórica, nem pode dar crédito aos Mistérios Eleusianos, que se baseavam no culto da Grande Deusa, protagonizados pela Mãe e a Filha e que perdurou na Grécia durante mais de 2 mil anos antes de Cristo, porque o consideraria não sacrilégio, mas meramente mitológico...

O pensamento marxista por muito humanista que seja e no caso do escritor é-o de certeza, torna-se sempre redutor quando de algum modo não abrage nem sequer admite a transcendência humana…e mais ainda os Mistérios. O marxismo nega a primazia do espírito e deus...No entanto Saramago interessa-me por figuras bíblicas e num dos seus últimos liv
ros, Caim, ele aborda personagem ainda mais polémicas e ignoradas da história católica como é o caso de Lilith, por suposto a primeira mulher de Adão que antes de Eva já foi condenada a demónio e aos infernos no Zoar por não se submeter ao homem...

Todavia, esta não é uma questão de mitos nem de fé nem de crenças, mas uma questão de consciência da Consciência, um conhecimento alargado que não é intelectual, um conhecimento antropológico e ontológico, baseado na abertura do coração…uma inteligência-sensibilidade que não é apanágio dos homens pois é precisa uma grande intuição, uma grande Alma que toque o além, que se abra ao infinito que é a vida para lá da mente pequena e medrosa dos homens e da sua razão tão tão rasa. Mas ainda bem que não é crente, porque ao menos consegue pensar livremente!


RLP

Este texto foi escrito há já algum tempo. Saramago faleceu ontem...
Espero que neste momento
a sua alma tenha entrado em contacto com uma dimensão superior e faça a viagem do espírito de volta à Origem em paz e amor.
Neste momento talvez ele já compreenda quais os limites que este cérebro nos impõe, esta visão quadrada da existência...e esteja onde estiver a rir-se das nossas precariedades sociais e intrigas políticas.

2 comentários:

MOLOI LORASAI disse...

só entra em contato quem na vida mantém o contato.

rosaleonor disse...

Tem razão. também penso assim quanto ao caminho de luz...mas creio que todos os seres mesmo agnósticos se depararão com a existência para além do corpo...mesmo que não saibam a sua direcção...

será que nós sabemos? espero que sim e não ter nenhuma surpresa.

abraço moloi...bem vindo

rleonor