O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, janeiro 16, 2015

QUANDO A MULHER NÃO SABE QUEM É A MULHER...



NG:  (...) Você tem falado sobre um “feminismo que não abarca a Mulher, mas é para mulheres”(2004: 329). Em que se baseia exatamente tal feminismo?


DH: Bom, isso é um assunto complicado e apenas podemos seguir algumas discussões. Nos termos de bell hooks, feminismo diz respeito ao movimento de mulheres, como um verbo, e não a algum tipo de dogma particular.  Eu estava entre as muitas que foram arrebatadas pelos movimentos de mulheres da minha geração.  Engajei-me na política do movimento de libertação de mulheres que surgiu no final dos anos 1960, e daí proveio uma herança muito pessoal, que tem a ver com suas segmentações de classe e de raça: minha compreensão do poder e dos limites do meu próprio feminismo histórico, em meus pequenos mundos coletivos.
Mas daí veio também uma herança muito maior, que é tentar lidar com a esperança impossível de que a desordem estabelecida não é necessária. Essa herança vem da teoria crítica e vê o feminismo como um ato de recusa ao sofrimento profundo e histórico nas vidas das mulheres em toda parte, ao mesmo tempo em que lida [com o fato de] que nem tudo é sofrimento. Há algo na vida das mulheres que merece ser celebrado, nomeado e vivido, e há entre nós algumas necessidades culturais e organizacionais urgentes – quem quer que “nós” sejamos.

O feminismo foi uma herança complicada, um lugar de políticas urgentes e um lugar de prazeres intensos por ser parte do movimento de mulheres. E aproximei-me de tudo aquilo como cientista, não com qualquer velho modelo de cientista, mas como uma bióloga; e como uma católica que recusa a igreja, mas é incapaz de se tornar uma humanista secular. A semiose é de carne e sangue e sobrevive de algum tipo de incapacidade de se contentar com uma semiótica que trate apenas do texto em alguma forma rarefeita. O texto é sempre de carne e costumeiramente não-humano, inacabado, não-homem. Isto era o feminismo, então, e é o que continua sendo para mim.
(...)
NG: Alguns leitores do “Manifesto” observaram que “você insiste na feminilidade do ciborgue”(Haraway, 2004: 321). Isto está correto? (...)A idéia de superar o gênero seria, então, nada mais (ou menos) que um “sonho utópico”?

DH: Não! Obviamente gênero está entre nós mais feroz do que nunca. Há algumas dobras, mas gênero se refaz em uma variedade de formas. E há um mundo trans (trans-ing) em desenvolvimento, que torna gênero o substantivo errado. Pessoas “trans” fazem um trabalho teórico realmente interessante, incluindo uma ex-aluna minha – Eva Shawn Hayward – que se recusa a fazê-lo em relação às pessoas (2004). Muita coisa interessante está acontecendo sob os prefixos pós- e trans-. Não é um sonho utópico, mas um projeto de trabalho concreto.  Tenho problemas com o modo como as pessoas se referem a um mundo utópico pós-gênero – “Ah, quer dizer que não importa mais se você é um homem ou uma mulher”. Isso não é verdade. Mas em alguns lugares de fantasia e criação de mundos (worlding), isto é de fato verdade, por bons ou maus motivos.

NG: Então, como você pensa gênero em um mundo cada vez mais transversal?

DH: Da maneira que Susan Leigh Star e Geoff Bowker me ensinaram e pensar: como trabalho categorial (veja Bowker e Star, 1999). Não divinize a categoria. Não elabore uma crítica e imagine que a categoria desapareceu apenas porque você fez uma crítica. Não basta você ou seu grupo descobrirem como a categoria funciona para fazê-la sumir; e concluir que a categoria é construída não significa que foi inventada do nada. Em alguns sentidos, estamos em um mundo pós-gênero; em outros, estamos em um mundo feroz de gêneros localizados. Mas talvez as teóricas “mulheres de cor” tenham acertado ao afirmar que estamos em um mundo interseccional. Isto é o que Leigh e Geoff queriam dizer quando elaboraram a categoria de “torção”. Vivemos em um mundo onde pessoas são criadas para viver simultaneamente várias categorias não-isomórficas, que as “torcem”. Então, em alguns sentidos, pós-gênero é uma noção significativa. Porém fico muito nervosa com o modo como essa noção se torna um projeto utópico.

NG: Então você usou o termo pós-gênero para provocar, e as pessoas o conduziram a diferentes direções?

DH: Sim. Mas e se for um mundo sem gênero tal como o compreendemos? Algumas pessoas acharam que isso significaria um mundo sem desejo, sem sexo e sem inconsciente, e eu não quis dizer isso. Mas eu de fato quis dizer que a teoria freudiana de inconsciente é apenas uma análise da vizinhança, ainda que poderosa." (...) 

Donna Haraway

QUEM QUISER LER NA INTEGRA:
http://www.pontourbe.net/edicao6-tradução
 

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