O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, junho 07, 2015

A NOSSA MÃE, UMA MÃE SEM AUTORIDADE

(...)

MAMMA MIA

O estranho é que, apesar de em países como o nosso e de uma forma geral nos países latinos, ainda parecer existir muito este tipo de mãe, tal não é infelizmente nenhuma garantia de estarmos a criar pessoas mais seguras de si, empoderadas e com sentido de responsabilidade social ou cívica, no fundo todas as qualidades de que o termo adulto/a se reveste na sua verdadeira acepção. Diria até que em países com “menos mãe”, ou com mães menos “latinas” essas qualidades parecem florescer melhor. Alguma coisa então não estará a funcionar como deveria com as nossas mães que à partida parecem corresponder tão bem à Mãe ideal. 

Pessoalmente, sinto que um dos grandes problemas reside na ideia muito enraizada entre nós de que a Mãe tem de se sacrificar. As mães são aquelas que se sacrificam, um pouco como a vela que arde e se consome até ao fim para que a sua luz nos possa iluminar. As mães sacrificam-se, dizem, pela família. Para que a paz e a harmonia reinem na família, fazem tudo, acreditam muitas delas, esquecendo-se de que a família tem a sua alma própria que tudo regista e tudo sente e tudo vai de alguma forma acabar por revelar e manifestar. Mas então, na sua valorização do sacrifício, a mãe acaba muito por se calar, por fazer de conta, por fingir que não ouve, por desculpar depressa demais, por aceitar muitas vezes o inaceitável. 

Na verdade, se quisermos ser rigorosas/os, o sacrifício da mãe aconteceu já muito antes de ela o ser, uma vez que ele é a base da própria família patriarcal que temos. Já agora, para quem viu o filme que cito no início, é bom lembrar um dos dados mais extraordinários da trama, que é o facto de nessa casa de sonho da Mãe não haver pai. A heroína não sabe sequer quem é o pai da sua filha e sai ilesa desse crime de lesa autoridade patriarca. E a subversão continua no filme na forma como os homens com a possibilidade de serem o pai se comportam, prontos e encantados com a ideia de assumirem esse papel, sem competição nem exclusivismo, como acontece nas sociedades matriarcais ou matrifocais em que o papel do pai é irrelevante, sendo os homens da família a assumirem a função de protetores e de educadores e a fornecerem o modelo do masculino de que a criança precisa. Não é minha pretenção aqui incentivar as mulheres a terem filhas e filhos sozinhas sem um pai, sejamos realistas; com o tipo de sociedade em que vivemos, isso tornar-se-ia um peso muito grande tanto para a mulher como para a criança. 

Voltando à ideia do sacrifício da Mãe, ele aconteceu quando este modelo em que a mãe era central foi substituído por aquele que temos em que ela está sob a alçada do pai. O poder da Mãe, que refletia ou emanava do tipo de divindade cultuada, a Grande Mãe Criadora, passou para segundo plano quando a divindade mudou de género e passou a ser o Pai. Todo o modelo mudou, os valores que regiam a sociedade mudaram, o imperativo tornando-se agora o domínio e a conquista em vez de a proteção da vida. Fomos expulsas/os do paraíso, acabou-se a Idade de Ouro, pela lei da espada patriarcal, como tão bem nos refere Riane Eisler nessa obra absolutamente ímpar que é O Cálice e a Espada (Via óptima, Porto). Assim, já só por um acaso temos o tipo de maisonnée (um termo popular francês que define não só a casa como o coletivo de pessoas que nela vive ou que gravita à sua volta) do filme Mamma Mia, que nos fornece uma visão, obviamente muito idealizada, do genuíno reino (ou seria raino?) da Mãe, ou tão genuíno quanto o sistema que respiramos permite, e que em resumo é uma Mãe com poder e autoridade. 

Porque, não nos iludamos quando pensamos, só porque vivemos numa família de mulheres ou porque vemos que lá em casa a última palavra é a da mãe, que isso significa que ela tenha poder genuinamente seu. Nenhuma mãe com poder emanado do seu próprio coração e forma de estar no mundo deixaria que um filho seu fosse para a guerra, por exemplo, aceitaria uma forma de progresso que implique destruição da natureza, ou aceitaria na sua cama um homem a tresandar a carnificina e a outros abusos de poder e profunda insensibilidade ao sofrimento alheio. O poder que nos parece muitas vezes emanar da mãe no tipo de sociedade em que vivemos é na verdade o poder patriarcal que ela assume como seu sem o ser, tendo perdido o rasto dos verdadeiros valores que em estado selvagem, de antes da domesticação patriarcal, emanariam do seu coração de mulher. 

Por que referi então no título que temos “excesso de mãe”? Porque a mãe que temos, desempoderada e desautorizada, e até infantilizada, por ter passado da alçada do pai para a do marido sem saber quem ela própria é nem ter amadurecido como adulta, é essencialmente uma mãe permissiva, que nessa profunda distorção patriarcal que é a ideia do sacrifício, permite tudo aquilo que não deveria permitir, não sabendo impor, com receio de perder o amor da sua descendência, limites nem fronteiras e sem ser senhora do seu verdadeiro sim nem do seu verdadeiro não, incapaz de fornecer qualquer modelo de força, coragem ou coerência, valores que criem cidadãos e cidadãs responsáveis, capazes de governar um mundo. Em vez disso, ela reproduz seres imaturos como ela, mimados pelo seu excesso de proteção sem exigência de contrapartidas de responsabilização pessoal, os egoistas e corruptos dirigentes que temos e os cidadões impotentes e assustados que em vão procuram refúgio nas saias duma mãe arquetípica que a única capacidade que parece ter é a de comungar do seu sofrimento.    

© Luiza Frazão

1 comentário:

Ná M. disse...

Lindo lindo lindo ! sim !