O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, janeiro 28, 2017

A MORTE DA MÃE



Os Últimos Estertores da Mãe e do Painel

"As filhas haviam oferecido ajuda a sua Mãe, esta recusara sobranceiramente.
As filhas riram do filho, tão penosamente nascido, ameaçaram a Mãe com sua proximidade, seus poderes iguais.
Édipa havia roubado seu irmão. As filhas contemplaram esses machos que nasciam como pólipos indiferenciados do braço escuro da Mãe inicial, e haviam roubado seus irmãos: salvando-os assim das águas, do anonimato.
A Mãe voltara, com suas regras pesadas:
- Esses seres que sentais ao vosso lado morderão vossos seios.
Em cada vai-e-vem das suas volutas, dos seus ciclos, no pulsar de suas inspirações e expirações, vida e morte, a Mãe criava e condenava.
Mães e filhas reconheceram-se iguais: em seus rostos, espelho das aguas inicias, suas condições criadoras.
E perante a dor das filhas a Mãe dissera:
- Não há paraísos perdidos, nem quedas, nem pecados: todas as coisas se resumem nas duas faces do mesmo princípio.
E a Mãe sangrava, sem nunca exaurir seu sangue.
As filhas sentaram os irmãos a seu lado. Cuidadosamente os trataram e preparavam para uma longa viagem.
Contaram as histórias da velha Mãe, e dos seus poderes, e de suas leis. Contaram as histórias da risonha e risível condição humana, em que o prazer da sobrevivência e da produção de vida tão intimamente se liga á necessidade de morte.
Os irmãos agradeceram todos os favores. Calçaram suas sandálias e empunharam seus cajados. Sabiam-se descendentes da mesma Mãe, e irmãos e tios de cada nova geração.
Solidários, preparavam-se para partir; animados de sonhos heróicos, como adolescentes, de sonhos de recriação do mundo.
- Encontraremos uma solução – disseram.
Suas irmãs ficaram inquietas, ao vê-los afastarem-se.
Os irmãos voltaram de longa viagem. Seus cabelos e barbas haviam embranquecido.
- Descobrimos o segredo da Mãe – disseram. E por suas bocas era a voz da Mãe que falava.
Talvez eles sinceramente julgassem ajudar. Mas imediatamente todas as mulheres se souberam traídas.
- Que refém vindes buscar, para afirmar vossa força – perguntaram elas.
- Vimos buscar os seres criados por nosso sémen, antes que o ventre da Mãe deles se aposse no seu difícil e longo parto – responderam.
- Mas quem criou e amamentou vossos filhos? – Insistiram as mulheres.
- Nós também ajudamos a defende-los e a criá-los – disseram os homens.
- E isso o que prova?
Mas a perguntadas mulheres ficou sem resposta. Todos aqueles viajantes anciãos se sentaram e entre si começaram a discutir. Os tios desfaçavam-se de benevolentes mães do sexo masculino, e contavam quanto haviam protegido e acariciado suas irmãs e sobrinhos. Outros homens preferiram afirmar-se enquanto «pais«, palavra nova que inventavam e defendiam a criação de uma nova lei: os direitos de cada um já não seriam definidos pelo tempo em tarefas de produção de vida, mas pela força, com a qual se pretenderia legitimar o prioritário direito dos momentâneos e ejaculatórios investimentos nessa produção de vida.
- A morte será a lei – disseram as mulheres.
Os sinuosos «pais « não desistiam do seu intento:
- Temos que salvar o filho. Teremos que o separar da Mãe e enviá-lo para longa viagem, para que esta não continue a absorve-lo, sempre, no seu enorme e cruel ventre.
A Mãe gritou:
- Apenas criarei uma raça de senhores que se alimentará do sangue de todos os outros.
E foi o seu último suspiro"

In “A Morte da Mãe”, de Maria Isabel Barreno

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