O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, setembro 23, 2018

AS TEMPESTADES



"O SILÊNCIO DOS PÁSSAROS


Na civilização, vemos a natureza ao longe, mediada por ecrãs e máquinas. Se estivermos dentro do fogo e da água, sujeitos à violência dos elementos, aprendemos a respeitar a natureza em vez de acabar com ela.


Dizem que os pássaros ficam em silêncio antes do terramoto. Não é só quando a terra treme que os pássaros se calam. Antes de uma grande tempestade, entra a quietação. Ninguém repara. Só a gente que vive em íntimo contacto com a violência da água, da terra, do fogo e do ar, muita desta gente tribal e rural, ocupada com a rudeza do trabalho manual e afastada da sociedade digital, escuta o silêncio e a ameaça que contém.

Este agosto, estava num barco no Golfo de Tonquim, no mar da China do Sul. O barco, um velho junco de madeira do tempo colonial, sólido e estável, navegava sem pressa. Naquela região, os barcos de turistas desaparecem e o mar é uma coberta verde-escura, ondulada pela monção. O sol flutuava por cima das escarpas das ilhas, e o calor húmido sufocava a intenção do movimento. Respirar faz suar. Nas escarpas, milhares de pássaros cavavam um som de paraíso e voavam minúsculos por entre a vegetação selvagem, uma rebentação verde e misteriosa, e o mar liso. O único som era o das aves e o do motor do barco a deslizar devagar. Ao nascer do sol, não se via uma nuvem no céu rosado. Ao cair do sol, o céu de cinza anunciava chuvada mas não era um céu enevoado, era liso como o mar. Soubemos que ia cair uma tempestade vinda da China, que descia a costa. A tripulação arrepiou caminho e movimentou o barco na direção de um lugar abrigado entre ilhas em círculo. A noite chegou e a tempestade parecia ter desistido. Dentro do barco as pessoas comiam e bebiam, cantavam. O irlandês insistia em cantar baladas e poemas com uma bela voz. Na proa e na ré, havia quem se dedicasse a pescar lulinhas. Não se via a lua, e o céu era uma massa negra sem estrelas. Uma meia dúzia de barcos começara a ancorar para a noite, todos avisados da tempestade. Eram barcos maiores, uns de fibra de vidro, outros de madeira e bojo largo. O nosso junco era o mais pequeno.

Quando fui sentar-me à ré, reparei que um grande silêncio descera sobre a paisagem. O mar, os barcos, os rochedos, a terra, o céu. Não se ouvia um silvo, uma aragem. Com os motores desligados, os barcos boiavam na quietação. Dos outros barcos não chegava o barulho, apenas se viam as luzes. Estavam demasiado longe. No deck da proa, descoberto, o irlandês fizera uma pausa. O silêncio estava cheio de premonições, um silêncio que tem de ser escutado com atenção para ser percebido. Os animais não soltavam um som. Perguntei ao capitão se ele ouvia o silêncio e ele disse que sim. O silêncio anunciava a tempestade. Para as bandas da China, os relâmpagos começaram a clarear a noite, grandes colheradas de luz. Era como se, algures, o dia amanhecesse a espasmos. Antes dos trovões, a chuva chegou. Primeiro, uma chuva fina, que as luzes do barco iluminavam como se fossem arames cortados em diagonal numa grade de água. E de repente, por volta da meia-noite, a tempestade estava sobre nós em força. Os relâmpagos sucediam-se e os trovões eram tão fortes que tinham tomado conta de tudo, uma violência puramente sonora. A trovoada mais forte que ouvi na vida, abafando o som das vozes dentro do barco. Os pescadores recolheram aos camarotes, o deck apagou as luzes e o irlandês calou a balada. Veio a chuva em cordas de água, uma água que açoitava o barco e o fazia rodar sobre si mesmo. O barco desenhava um círculo, rodando com a tempestade. O vento era agora um ciclone, rajadas de chuva e ar que se abatiam sobre os barcos como num furacão. E não era um furacão. Era uma tempestade marítima tropical, mais forte do que se previra. Os barcos deveriam ter regressado ao porto, a tempestade tinha sido subestimada. No meu camarote, a chuva entrava por todos os buracos do teto e da janela, e descia pelas luzes e o altifalante, que tinham por trás fios escondidos. Desliguei todas as coisas elétricas, e fiquei na escuridão a escutar a natureza. Era medonho ouvir a tempestade e sofrer a ira dos ares e da água, temendo que o fogo irrompesse de um curto-circuito nos fios molhados. Nenhum socorro poderia romper a tempestade, nenhum barco chegaria a outro. Nenhum bote aguentaria no mar que se revoltava em ondas picadas de vento que espumavam enfurecidas. O mundo mudara. Tudo na paisagem estava agora contra nós, os seres humanos. Tudo parecia querer aniquilar-nos, extinguir a nossa espécie. O barco rodava veloz sobre si mesmo, uma casca desamparada. A madrugada acalmou e regressámos ao porto sãos e salvos. A viagem foi interrompida.

A razão pela qual as pessoas não querem saber da sorte do planeta, nem do aquecimento global, da poluição dos ares, da morte das árvores, da agonia dos animais, dos furacões e das tempestades, dos mares de plástico, dos degelos e das secas, dos incêndios selvagens e das inundações, é simples. Na civilização, vemos a natureza ao longe, mediada por ecrãs e máquinas, solicitada pelos confortos da supremacia humana. Protegidos pela tecnologia, a previsão e a distância. Se estivermos dentro do fogo e da água, sujeitos à violência dos elementos, aprendemos a respeitar a natureza em vez de acabar com ela. Condenámo-nos por preguiça e egoísmo, e já se ouve o silêncio dos pássaros no planeta Terra."


Clara Ferreira Alves

Sem comentários: