quinta-feira, novembro 20, 2003

"PRÓXIMO É AQUELE QUE SOFRE
E DE QUEM NÓS NÃO TEMOS PIEDADE"

Y.K. Centeno


A ODISSEIA DO RANCOR...

AINDA CIORAN


Para que possamos manter a fé em nós mesmos e em outrem, e para que não nos apercebamos do carácter ilusório, da nulidade de toda e qualquer acção, a natureza tornou-nos opacos a nós próprios, sujeitos a uma cegueira que dá o mundo ao mundo e o que o governa. Se empreendêssemos uma indagação exaustiva sobre nos próprios, a repulsa paralisar-nos-ia e condernar-nos-ia a uma existência sem rendimento. A incompatibilidade entre o acto e o conhecimento de si parece ter escapado a Sócrates; sem o que, na qualidade de pedagogo, de cúmplice do homem, não saberiamos se teria ousado adoptar a divisa do oráculo, com todos os abismos da renúncia que ela supõe e nos convida.

Enquanto possuímos uma vontade própria e lhe permanecemos apegados (tal é a acusação endereçada a Lucífer), a vingança é um imperativo, uma necessidade orgânica que define o universo da diversidade, do "eu", e que não poderia ter fosse que sentido fosse de identidade. Se fosse verdade que "é no Uno que respiramos" (Plotino), de quem nos vingaríamos aí onde toda a diferença se esbate, onde comungamos no indiscernível e perdemos os nossos contornos?

De facto respiramos no múltiplo; o nosso reino é o do "eu", e não há salvação através do "eu". Existir é condescender com a sensação, e portanto com a afirmação de si; de onde o não-saber (com a sua consequência directa: a vingança), princípio de fantasmagoria, origem da nossa peregrinação na terra.

Quanto mais procuramos arrancar-nos ao noso eu, mais mergulhamos nele. Bem podemos tentar fazê-lo explodir, no próprio momento em que julgamos ter conseguido, ei-lo que nos surge mais seguro do que nunca; tudo o que empreendemos para o arruinar só serve para aumentar a sua força e a sua solidez, e tais são o seu vigor e a sua perversidade que ele se dilata ainda mais no sobrimento do que na fruiçãoÉ assim com os o eu, é assim, por maioria de razão com os actos."


in HISTÓRIA E UTOPIA
Emile Cioran

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