quarta-feira, junho 23, 2004



A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos.
Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos – vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são elementares da arte, ou antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o início. Da arte não há despertar porque nela não dormimos, embora sonhássemos. (...)


Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados como a um gato, a tudo o que poderia ter dito.

In O LIVRO DO DESASSOSSEGO
Fernando Pessoa

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