terça-feira, outubro 02, 2012

RECUPERAR A MÃE VERDADEIRA


 

 

A MÃE COMO ELEMENTO DETERMINANTE
DA SOCIEDADE



“Recuperar a mãe verdadeira pressupõe então recuperar o coletivo de mulheres e a sua função coletiva dentro dum determinado grupo social. A recuperação da mãe não é uma recuperação individual (embora tenha uma dimensão individual e corporal), mas a recuperação do feminino coletivo, de todas nós.”

“Com a frase “Dai-me outras mães e eu vos darei outro mundo”, Santo Agostinho revelava o ponto débil do seu projeto de sociedade e a necessidade que tinham de transformar duma vez por todas as mães. Transformar as mães para vencer a natureza humana e a sua predisposição para se organizar e viver como o fez durante muito tempo, sem dominação nem escravatura, em paz e em cooperação (a arqueologia já afastou qualquer dúvida a este respeito, provando que a Idade de Ouro não é um mito mas uma realidade).

Novas mães para reproduzirem os “filia” continuadores das empresas guerreiras, humanos aptos para fazerem a guerra ou para aceitarem tornar-se escravos. Não se podia criar este mundo sem mudar a mãe. A sociedade patriarcal foi erguida sobre um matricídio, acabando com as gerações de mulheres com cujo desaparecimento se sumiu também a paz sobre a Terra (Bachofen). É esta a civilização que perdura ainda hoje, continuando a destruir a vida e a corromper a condição humana, mais competitiva, mais fratricida, mais belicista e mais desapiedada que nunca. Do meu ponto de vista, não é a economia que está em crise, é o modelo de civilização. Na encruzilhada na qual a humanidade se encontra, o que precisamos de fazer se queremos acabar com este sistema de dominação e sobreviver é recuperar a verdadeira mãe, e com ela as qualidades básicas dos seres humanos, que nos capacitam para a concórdia e nos incapacitam para o fratricídio. Recuperar a mãe verdadeira é recuperar o habitat que a rodeia. Bachofen criou um termo em alemão para o definir: é o Muttertum, sendo que o sufixo “tum” (equivalente ao “dom” em inglês) significa o sítio, o lugar da mãe.


Não se trata apenas dum espaço físico, mas antes dum conjunto de relações travadas com o seu fluxo libidinal específico, o fluido feminino-materno, o hálito materno, porque a produção do nosso sistema orgânico libidinal, desenhado para organizar as relações humanas, é a matéria-prima do tecido social humano original. O Muttertum é assim como a urdidura da tela social, como lhe chamou na sua preciosa metáfora Martha Moia: um conjunto de fios, porque um fio sozinho não consegue fazer a urdidura. Recuperar a mãe verdadeira pressupõe então recuperar o coletivo de mulheres e a sua função coletiva dentro dum determinado grupo social. A recuperação da mãe não é uma recuperação individual (embora tenha uma dimensão individual e corporal), mas a recuperação do feminino coletivo, de todas nós. Segundo Malinowski, as mulheres trobriandesas dum clã (in The Sexual Life of Savages in the Western Melanesia) tinham um nome coletivo, “tábula”, a “tábula” é que se ocupava do parto das mulheres do clã.


Em castelhano há uma aceção do nome "mãe" que é um vestígio dessa mãe ancestral, que se encontra na expressão "salirse de madre", "sair da mãe", que seria sair do Muttertum, que nos faz amadurecer e nos torna consistentes. Há também uma aceção em que a palavra significa "fonte originária de algo" ("a mãe do vinagre", por exemplo), ou como a raiz de algo, quando dizemos que encontrámos a "mãe do cordeiro". Se um rio sai da "madre", tudo se inunda e é o desastre. Pois assim anda a humanidade, "fora da mãe", em permanente estado de esquizofrenia e cada vez com mais ataques de violência..."

Cacilda Rodrigañez Bustos

1 comentário:

  1. O Medo - Carlos Drummond de Andrade

    > Em verdade temos medo.
    > Nascemos escuro.
    > As existências são poucas:
    > Carteiro, ditador, soldado.
    > Nosso destino, incompleto.

    > E fomos educados para o medo.
    > Cheiramos flores de medo.
    > Vestimos panos de medo.
    > De medo, vermelhos rios
    > vadeamos.

    > Somos apenas uns homens
    > e a natureza traiu-nos.
    > Há as árvores, as fábricas,
    > Doenças galopantes, fomes.

    > Refugiamo-nos no amor,
    > este célebre sentimento,
    > e o amor faltou: chovia,
    > ventava, fazia frio em São Paulo.

    > Fazia frio em São Paulo...
    > Nevava.
    > O medo, com sua capa,
    > nos dissimula e nos berça.

    > Fiquei com medo de ti,
    > meu companheiro moreno,
    > De nós, de vós: e de tudo.
    > Estou com medo da honra.

    > Assim nos criam burgueses,
    > Nosso caminho: traçado.
    > Por que morrer em conjunto?
    > E se todos nós vivêssemos?

    > Vem, harmonia do medo,
    > vem, ó terror das estradas,
    > susto na noite, receio
    > de águas poluídas. Muletas

    > do homem só. Ajudai-nos,
    > lentos poderes do láudano.
    > Até a canção medrosa
    > se parte, se transe e cala-se.

    > Faremos casas de medo,
    > duros tijolos de medo,
    > medrosos caules, repuxos,
    > ruas só de medo e calma.

    > E com asas de prudência,
    > com resplendores covardes,
    > atingiremos o cimo
    > de nossa cauta subida.

    > O medo, com sua física,
    > tanto produz: carcereiros,
    > edifícios, escritores,
    > este poema; outras vidas.

    > Tenhamos o maior pavor,
    > Os mais velhos compreendem.
    > O medo cristalizou-os.
    > Estátuas sábias, adeus.

    > Adeus: vamos para a frente,
    > recuando de olhos acesos.
    > Nossos filhos tão felizes...
    > Fiéis herdeiros do medo,

    > eles povoam a cidade.
    > Depois da cidade, o mundo.
    > Depois do mundo, as estrelas,
    > dançando o baile do medo.

    ResponderEliminar

quem vier por bem seja bem vindo...