domingo, junho 26, 2022

o beijo é humano, mas...

isto é obsceno! 

      • Agora, este Presidente da República levou o contrabando a outro patamar. Mora aqui contrafacção de emoções e, sobretudo, de sentimentos com vista à popularidade apenas. Finge-se que se ama, que se vive compaixão, há performance de empatia e de comunhão. Falsificado o beijo, fica a barbárie. Já tinha acontecido com Pedrógão, claro. Mas, agora, foi a reboque de um bebé perdido num Estado falhado. Agora vale tudo. Até arrancar olhos."
O QUE JUDAS BEIJOU 

De todos os gestos humanos, o mais íntimo é o beijo. Aliás, o beijo é humano. Quase exclusivamente humano (um beijinho aos chimpanzés, pronto). A sua relação com a evolução do Homo sapiens é profunda. Para o compreender, basta dizer que o beijo nasce da necessidade de os bebés humanos terem mais massa encefálica. Para chegarem ao mundo com grandes cabeças, nascem menos autónomos do que outros primatas superiores. Inclusive, já depois de deixarem de mamar, as crias sapiens continuavam a beijar os pais para se nutrirem - estes transferiam comida já mastigada à criança que, com dois anos, por exemplo, é menos emancipada do que um potro à nascença. Para compreender a intimidade do beijo, basta dizer que se tornou tão nervo da experiência da humanidade que transformou até a anatomia: os lábios humanos são mais grossos e são do avesso. Tudo para poder beijar. Ou seja, os gestos de alimentação/sobrevivência, ritualizados, passaram depois a gesto de afecto. Por isso, primeiro, a mãe passava a comida; agora, os amantes passam línguas e rebuçados.


Beijar é humano. Mas não deve ser banal. Sobretudo certos beijos. E se ósculo é intimidade, civilização e cultura, tocar assim na barriga de uma mulher grávida é todo um programa. Os beijos têm um código social. O beijo na cara, o beija-mão, o beijo na testa, o beijo nos pés. Cumprimento, hierarquia, consolo, veneração. Beijos há muitos e as suas variantes são ainda mais. Mas quem beija o barrigão ou é pai ou irmão. Talvez avô ou avó. Mão na barriga, ainda vá que não vá; agora, boca é outra proximidade, é casa. Lar. Quando estamos grávidas há, de facto, nova apropriação do corpo da mulher, inspeccionado e revirado, afagado, avaliado. Muitas gestantes são então reduzidas a meras transportadoras de um passageiro e devem por isso tolerar coisas como a senhora do supermercado fazer-lhe festas na barriga ou os constantes comentários sobre o formato da bossa. Etc. Mas Marcelo levou esta espécie de nacionalização do corpo da grávida longe demais. Sobretudo, não sendo o Presidente da República o pai de todos (embora talvez gostasse), a banalização que imprimiu àquele encosto de lábios transformou um dos sinais sociais mais belos num gesto quase obsceno. Daí que muita gente tenha reagido à foto de Cotrim com incredulidade e mesmo repulsa. Algo estava errado naquele momento. Forçado, artificioso. E, de facto, está mesmo. Naquele acto, Marcelo vulgarizou o que deve ser singular, trivializou o privado e a cumplicidade feérica.

Já tivemos políticos a falsear a verdade, o bem, o bom e o belo. Já todos sabemos que mercadejam a ética... até se diz: “Rouba, mas faz.” Agora, este Presidente da República levou o contrabando a outro patamar. Mora aqui contrafacção de emoções e, sobretudo, de sentimentos com vista à popularidade apenas. Finge-se que se ama, que se vive compaixão, há performance de empatia e de comunhão. Falsificado o beijo, fica a barbárie. Já tinha acontecido com Pedrógão, claro. Mas, agora, foi a reboque de um bebé perdido num Estado falhado. Agora vale tudo. Até arrancar olhos."

Joana Amaral Dias

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