TRÊS EXCERTOS DE O OVO E A GALINHA
(...)
“Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o
renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso
se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos
reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um
jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então,
não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora
não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é
concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a
grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras
ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a
vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter.
Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio,
por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida
exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal.
Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus
agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar
vagamente.”
E me faz sorrir no
meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me
dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço
um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar
a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu
verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha
vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros
fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso
tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me
deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho
usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente
esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.”
(...)
"Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil
não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de
mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma
como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como.
Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o
que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só
tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um
agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram
mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao
menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram
adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e
de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só
instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já
experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até
hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para
sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro
raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo
o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim,
também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas
instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o
coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo!
Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração
batendo de confiança, eu pelo menos não sei."
(...)
clarice lispector
2 comentários:
clarice é fascinante
é mesmo! sempre...uma revelção...
grande beijinho!
rl
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