A mulher criou o universo,
O universo tem a sua forma;
A mulher é a fundação do
mundo,
Ela é a forma verdadeira do
mundo,
Ela é a forma verdadeira do
corpo.
Qualquer forma que ela tome
Seja a de um homem ou de
uma mulher,
É a forma superior.
Na mulher repousa a forma
de todas as coisas,
De tudo o que se move no
mundo.
Não há jóia mais preciosa
do que a mulher,
Nenhuma condição superior à
sua.
Não existe, jamais existiu
e jamais existirá
Destino igual ao de uma
mulher;
Não há reino nem fortuna
Comparável a uma mulher.
Não existe, jamais existiu
e jamais existirá
Lugares santos que se
assemelhem à mulher.
Nenhuma oração se iguala a
uma mulher.
Não existe, jamais existiu
e jamais existirá
Yoga que se eleve ao nível
de uma mulher,
Fórmula mística nem
ascetismo
Que tenha o valor da
mulher.
Não existe, jamais existiu
e jamais existirá
Riquezas com mais valor do
que o da mulher.
SHAKTISANGAMA TANTRA
KALI – A FORÇA DO FEMININO
AJIT MOOKERJEE
Com efeito, o
mito celta da Mulher pode iluminar-se a uma outra luz se tivermos em conta ao
mesmo tempo a importância dada pela psicanálise à identificação com a mãe e a
recorrência dos temas das filiações uterinas em todos os textos literários
bretões ou irlandeses. Juridicamente, a família celta é agnatícia, mas não de
modo absoluto. Os privilégios reservados às mulheres provam-no e são o
testemunho duma hesitação entre a família agnatícia e a família cognática, ou
seja, aquela que repousa inteiramente sobre a mulher, centro incontestado de
toda a filiação e de toda a sucessão.
Esta nostalgia,
pois disso se trata, da época cognática exprime-se no direito irlandês, no
direito britónico e no mito em geral. Trata-se do testemunho dum recalcamento
do desejo secreto de regressar ao antigo sistema, senão nos factos, pelo menos
numa espécie de metafísica eivada dum erotismo muito subtil a que somente a
psicanálise pode dar uma explicação satisfatória.
Dado que os
celtas são, apesar de tudo, Indo-Europeus, consideremos em primeiro lugar a
noção de feminilidade dos antigos Indús. O princípio feminino é chamado, na
terminologia dos Veda, Shakti. Ora, parece que toda a mitologia bramânica
repousa sobre o facto que a divindade masculina nada pode sozinha, e que é
necessário que uma divindade feminina a complete para que haja acção. Não
existe aqui um deus macho único e cioso das suas prerrogativas. Tal deus também
não existia para os outros Indo-Europeus, pelo menos nos tempos primitivos.
Podemos resumir simplificadamente a teogonia védica do seguinte modo: no
princípio existia Brahma, o Todo indiferenciado, o Absoluto. Mas o Absoluto,
sendo absoluto, é incapaz de acção. Esta constatação hegeliana conduz à
suposição duma forma relativa de divindade absoluta e indiferenciada: será
Shiva. É em Shiva que se concretiza uma das faces de Brahma. Shiva é o ser
relativo, mas não podemos conceber um ser sem o seu oposto – ou o seu
complemento – e Shiva, que é masculino, que é o legislador característico duma
sociedade paternalista, não pode efectivamente sê-lo sem lhe opor um princípio
feminino pelo qual ele existe; caso contrário, ele tornar-se-ia Brahma
indiferenciado e absoluto. Este princípio feminino, esta Shakti toma a imagem
da antiga deusa pré-ariana Kali, ou o rosto de qualquer outra deusa: ela é a
esposa de Shiva, ela é etimologicamente “a energia
em acção, o dinamismo do tempo”. Shiva está sentado em contemplação
interior, fora do tempo e portanto do espaço. Ele é
pois o lado passivo da eternidade. E é Shakti que o põe em movimento: a deusa é
por consequência o aspecto activo da eternidade.
Para melhor
compreendermos, os papéis estão invertidos. Os
homens, que se os dominadores do mundo e os reguladores da ordem estabelecida,
não imaginam por um instante que o seu poder não é senão passividade e que o
poder da mulher, que eles desprezam (mas que também temem e invejam), é o poder
activo. Assim se explica que em algumas línguas que conservaram a
lembrança de épocas anteriores, o germânico, o celta e o semita, para não falar
senão destas, o sol seja feminino e a lua masculina. O Sol representa com efeito o calor activo que se derrama sobre o
mundo e que dá vida à Lua, astro estéril que não é fecundado senão pelo Sol.
No folclore do mundo inteiro, contam-se histórias a propósito da Lua que
engravida as mulheres, advertem-se as mulheres para não urinarem diante da Lua,
estabelece-se uma relação entre a Lua e o ciclo menstrual. Este último ponto é
de resto muito importante, pois ele indica os períodos de fecundidade da
mulher: o que significa que a fecundidade feminina solar precisa do seu
contrário lunar, contrário passivo e frio. Isto não é senão um raciocínio
dialéctico, mas a história de Tristão e Isolda que fez as delícias de todas as
exegeses do amor ocidental, se baseia nesta oposição (…).
Não é preciso
referir que a concepção de Shakti, princípio activo da divindade está na origem
das numerosas representações de uniões sexuais nas fachadas dos templos
bramânicos: todas essas representações evocam, em diversos graus, a união de
Shiva e de Shakti. Trata-se do hierosgamos, para o qual tendem
inconscientemente todas as criaturas, por sentirem que desta união nasce a
maia, o mundo da ilusão, o que significa claramente para um Europeu, o mundo
das realidades aparentes, ou ainda o mundo da relatividade.
É para este
hierosgamos que tendem todos os heróis das epopeias celtas (…). Porque o herói, mesmo tratando-se dum herói de cultura, e
portanto dum herói de ordem masculina, é a imagem de Shiva: nada pode fazer
sozinho. Ele não é senão passividade.
É por essa
razão que descobrimos nas lendas celtas uma identificação do filho com a Mãe. A
identificação do filho com a mãe, como a do amante com a amante, é uma espécie
de hierosgamos. Daí provêm todos os estranhos casais da mitologia antiga: Mabon
e a sua mãe Modron, depois Owein-Yvain e a sua mãe Modron; Rhiannon e o seu
filho Pryderic (…). O casal constituído pela mãe e pelo filho, demasiado
chocante e provocador numa sociedade paternalista, foi substituído pelo casal
dos amantes no qual se produz entretanto a mesma identificação. O amor que une
dois seres como Tristão e Isolda, como Diarmaid e Grainé, como Étain e Mider, é
a peripécia simbólica pela qual os amantes acedem à natureza divina: o tema, já
muito antigo, é o do mortal que obtém os favores da deusa e por consequência
acede ao estádio do divino, sendo a deusa simbolizada pela Mulher Amada, a
Amante Ideal, a Amante fatal, a Fada de múltiplas faces, aquela que é cantada
pelos trovadores, a Senhor todo-poderosa e soberana.
Jean Marckale, “La Femme Celte”