O DIREITO DA E À MÃE
Mutterlich e o Muttertum, de Maternal e não matriarcal. A confusão da tradução da palavra para várias linguas deu origem a uma interpretação errónea da história e do periodo em que a Mãe era a entidade suprema nas sociedades, era a Mulher Mãe e não uma deusa que reinava, antes do patriarcado.
"Mutterlich em alemão textualmente quer dizer materno, a pesar de que tenha sido traduzido de forma errónea por ‘matriarcal’, conceito que implica um archos, o Poder da Mãe. Também Muttertum, textualmente significa ‘o ambiente materno’, e costuma ser traduzido por ‘matriarcal’. Bachofen, para fazer referência a certas sociedades com dominação (archos) feminina, que existiram nos começos da transição, utiliza ginecocracia, marcando assim a diferença dos povos que se organizavam segundo o mutterlich e o Muttertum.
Bachofen, no livro citado, explicou a razão pela qual as
relações nos grupos humanos das sociedades de ‘direito de mãe’ (mutterrecht)
-ou seja, que viviam segundo as ‘regras da mãe’-, eram fraternas. A ´regra´ da
mãe é o bem-estar das suas criaturas, porque o desejo materno é uma pulsão
libidinal na que o próprio prazer é alcançado ao comprazer às criaturas. E
quando uma criatura é comprazida brota dela mesma o desejo de comprazer aos
seus irmãos e irmãs com os que cresceu compartilhando a cumplicidade do corpo
materno: as brincadeiras, os risos, as piadas, as mamas, as babas, o leite, as
lambidelas, as caricias, os modos e maneiras de realizar o bem-estar corporal;
ou seja, compartilhando o amor primário. A verdadeira fraternidade como dizia
Bachofen, é corporal, uterina, e é feita de libido materna (com a suas caricias
e lambidelas, e os produtos fisiológicos dos fluidos maternos: água, proteínas
varias, imunoglobulinas, enzimas, opiáceos, prolactina, oxitocina, etc.); e esse
tipo de relações fraternas expandiam-se para o resto do grupo em que se tinha
nascido.
(...)
Dito de outra maneira, segundo Bachofen é do mutterlich (do
maternal) que brota o desejo de complacência e de bem-estar. E o Muttertum (o ambiente
materno) é onde as qualidades das criaturas humanas que descrevemos antes podem
desenvolver-se, crescer, expandir-se, consolidar-se, fazer-se tecido social, o
mutterrecht, a sociedade que funciona segundo o desejo materno de bem-estar,
não em contra senão a favor das qualidades inatas e do bem-estar humano.
Podemos entender as noções de lealdade, de ‘nobreza de espírito’, … que
contaram alguns viajantes e escritores, observadas em certos índios de América
do Norte, e de outros continentes. A vontade e as qualidades humanas se suavizavam
e se afinavam ao desenvolver esse estado primário de inocência que mencionamos;
é dizer, na prática da complacência, da generosidade e na realização do bem-estar
dos e das outr@s. A amizade, por exemplo, era um valor que dignificava às
pessoas e que ninguém ousava profanar; trair a confiança que alguém tinha
depositado em ti, uma indignidade e uma baixeza difícil de suportar; proferir
uma mentira era a maior vileza que se podia acometer. Tratava-se de um modelo
de socialização que desenvolvia as qualidades inatas das criaturas e conservava
a inocência e a confiança originais.
Desde a nossa perspetiva atual de ausência de bem-estar, o
bem estar é uma meta como diz Jean Liedloff, algo para procurar. No entanto, o bem-estar
é o estado primário e normal da criatura, a sensação que acompanha a
autorregulação; é, portanto, algo que perdemos, e que temos que buscar e
recuperar. E essa noção de ‘algo perdido’ a encontramos nos paraísos perdidos
dos mitos das origens. O bem-estar é o estado anímico normal da criatura
humana, ao que acrescenta-se a alegria, regozijo, ternura, paixão, prazer. O
conceito de ‘felicidade’ que temos é uma saudade desse estado e das suas
consequências.
Nosso conceito de ‘felicidade’ é um conceito errático,
porque não repousa no estado de bem-aventurança da autorregulação de nossa
genuína integridade psicossomática, e nos leva a estar permanentemente no
estado de busca do que não temos nem somos. Desde o ego, a felicidade é uma
busca errática, uma ilusão vã, porque a competitividade, a apropriação, a
inibição da ação (a submissão) e a dominação, que é para o que o ego é
constituído, não produzem nenhum bem estar, e nessa busca errática, a alegria,
o regozijo, a paixão e o prazer são ilusões que se abrem caminho evadindo-se da
realidade (por isso o sucesso das drogas) ou se desvanecem como fantasmas,
quanto mais perto parece que estamos dela. (...)
“Na descrição da inibição das pulsões na infância, me refiro
quase exclusivamente às meninas: à partida pela importância da desconexão e
rigidez do útero com relação ao tema chave da corrupção da maternidade que
corrompe a sexualidade primaria e infantil, e com ela a capacidade humana de
amar; logo porque ao ser tão evidente, tão brutal e de consequências tão
patentes, a devastação que essa civilização inflige na sexualidade feminina,
nos permite ter a perspetiva da envergadura do desequilíbrio corporal e social
que produz.
Então:
* Negada a bondade do prazer e a sua possibilidade efetiva,
* Inibidas as pulsões,
* Suprimidas as práticas espontâneas,
* Relegado o desejo inibido a um inconsciente blindado,
* Deformadas, idealizadas e devidamente educadas as emoções
e os sentimentos (pela pressão de um corpo simbólico e uma cultura que intervém
para codificá-las e dar-lhe um significado falso, e agora também pela ação
pedagógica direta das novas psicologias adaptativas e a difusão massiva da
tecno-sexologia).
Então fica estabelecido (cultura, hábitos, família, leis,
ordem simbólica) que a única sexualidade humana é coital e adulta e que está
vinculada à dominação do homem sobre a mulher e de ambos sobre as criaturas. De
facto, o conceito de sexualidade é desvirtuado ao identificá-la com
genitalidade, e/ou, já em menor medida, com a reprodução.
De maneira que todas as pulsões e emoções que conseguimos
perceber, as projetamos e orientamos em direção a essa única prática sexual, e
em direção a esse único conceito de sexualidade associado, quase se poderia
dizer identificado, com genitalidade e falocracia.
E assim a sexualidade fica inconsciente e praticamente unida
às relações de dominação entre os dois sexos e entre a idade adulta e a
infância, como veremos mais detalhadamente no capítulo 5, no qual voltaremos a
entrar no que Deleuze e Guattari chamaram edipização.
Todo o restante fica silenciado, não há palavras para falar
sobre isso, nem imagens para imaginá-lo.
Assim sucede que as pulsões maternas que se filtram,
interpretam-se como transferências da única sexualidade reconhecida, portanto
incestuosas e perversas. O desejo materno “refoulado” (reprimido) inconscientemente
que é um anelo de simbiose, projeta-se e fica incluído no desejo da sexualidade
coital, única que cabe na nossa imaginação, e que propicia-se com o mito da
meia laranja que atua de isca para atrair o anelo do amor simbiótico. Porém a
relação coital não é um estado de simbiose (no sentido biológico da palavra);
ou seja, não é um estado de fusão contínua imprescindível para a sobrevivência;
e por mais que quisemos prolongar a lua de mel das primeiras paixões não é como
a relação mãe-criatura, já que é uma relação promovida por uma libido prevista
para umas fusões descontinuas. A libido da fusão continua é a materna, não a
coital. E o casal homem-mulher é uma dupla diferente da dupla mãe-criatura,
pela diferente qualidade das libidos que as sustentam. A dupla mãe-criatura é
um par simbiótico, uma díade, e tem uma carga libidinal diferente, com uma
intensidade específica, relativa à simbiose que deve regular.
A verdadeira lactancia é uma implementação impressionante da
sexualidade humana, da criatura e da voluptuosidade jamais definida (Groddeck)
da mulher; e pressupõe uma fusão tão grande que Nils Bergman (nota 13, pag 14)
diz que mãe e criatura foram um só organismo; aqui sim se corresponde à imagem
das duas meias laranjas que fazem a laranja, a unidade. No entanto, a lactancia
é apresentada descafeinada, desapossada dessa libido e do prazer que a
acompanha, e com um vínculo apenas corporal. Como se tudo ficasse no contacto
pontual e superficial da boca com o mamilo, ocultando o que sucede no interior
de ambos corpos. Ou como se somente fora um processo da fisiologia do sistema
digestivo.
Segundo a nossa ordem sexual, a libido da maternidade
reprimida mais ou menos de forma inconsciente de acordo com os casos,
projeta-se ao casal homem-mulher (que não é um par simbiótico). E o que
acontece é que o vínculo homem-mulher recarrega-se no imaginário coletivo de
uma libido que de alguma forma não lhe corresponde; e por isso a imagem da meia
laranja é um mito falacioso e irrealizável.
Disso tudo surgem os “apegos” patológicos dos casais; as
relações tornam-se neuróticas porque têm que adaptar-se ao modelo socialmente
estabelecido da “meia laranja”, que supõe a translação do amor primário
simbiótico mãe-criatura. E segundo esse modelo efetivamente projetamos o anelo
libidinal de simbiose, latente desde a nossa etapa primaria, ao casal adulto.
Os “apegos” patológicos podem serem muito variados: tabaco, jogo, drogas,
chocolate, consumismo compulsivo, sexo sem desejo, possessões, fama, Poder… É a
busca insaciável do bem-estar perdido, tratando de atenuar a ansiedade que
brota da Falta Básica, a falta do amor primário.”
Cacilda Rodrigañes Bustos – in A Rebelião de Édipo II