O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, agosto 18, 2023

Mutterlich e o Muttertum, de Maternal e não matriarcal.


O DIREITO DA E À MÃE 

Mutterlich e o Muttertum, de Maternal e não matriarcal. A confusão da tradução da palavra para várias linguas deu origem a uma interpretação errónea da história e do periodo em que a Mãe era a entidade suprema nas sociedades, era a Mulher Mãe e não uma deusa que reinava, antes do patriarcado. 

"Mutterlich em alemão textualmente quer dizer materno, a pesar de que tenha sido traduzido de forma errónea por ‘matriarcal’, conceito que implica um archos, o Poder da Mãe. Também Muttertum, textualmente significa ‘o ambiente materno’, e costuma ser traduzido por ‘matriarcal’. Bachofen, para fazer referência a certas sociedades com dominação (archos) feminina, que existiram nos começos da transição, utiliza ginecocracia, marcando assim a diferença dos povos que se organizavam segundo o mutterlich e o Muttertum.


Bachofen, no livro citado, explicou a razão pela qual as relações nos grupos humanos das sociedades de ‘direito de mãe’ (mutterrecht) -ou seja, que viviam segundo as ‘regras da mãe’-, eram fraternas. A ´regra´ da mãe é o bem-estar das suas criaturas, porque o desejo materno é uma pulsão libidinal na que o próprio prazer é alcançado ao comprazer às criaturas. E quando uma criatura é comprazida brota dela mesma o desejo de comprazer aos seus irmãos e irmãs com os que cresceu compartilhando a cumplicidade do corpo materno: as brincadeiras, os risos, as piadas, as mamas, as babas, o leite, as lambidelas, as caricias, os modos e maneiras de realizar o bem-estar corporal; ou seja, compartilhando o amor primário. A verdadeira fraternidade como dizia Bachofen, é corporal, uterina, e é feita de libido materna (com a suas caricias e lambidelas, e os produtos fisiológicos dos fluidos maternos: água, proteínas varias, imunoglobulinas, enzimas, opiáceos, prolactina, oxitocina, etc.); e esse tipo de relações fraternas expandiam-se para o resto do grupo em que se tinha nascido.

 (...)

Dito de outra maneira, segundo Bachofen é do mutterlich (do maternal) que brota o desejo de complacência e de bem-estar. E o Muttertum (o ambiente materno) é onde as qualidades das criaturas humanas que descrevemos antes podem desenvolver-se, crescer, expandir-se, consolidar-se, fazer-se tecido social, o mutterrecht, a sociedade que funciona segundo o desejo materno de bem-estar, não em contra senão a favor das qualidades inatas e do bem-estar humano. Podemos entender as noções de lealdade, de ‘nobreza de espírito’, … que contaram alguns viajantes e escritores, observadas em certos índios de América do Norte, e de outros continentes. A vontade e as qualidades humanas se suavizavam e se afinavam ao desenvolver esse estado primário de inocência que mencionamos; é dizer, na prática da complacência, da generosidade e na realização do bem-estar dos e das outr@s. A amizade, por exemplo, era um valor que dignificava às pessoas e que ninguém ousava profanar; trair a confiança que alguém tinha depositado em ti, uma indignidade e uma baixeza difícil de suportar; proferir uma mentira era a maior vileza que se podia acometer. Tratava-se de um modelo de socialização que desenvolvia as qualidades inatas das criaturas e conservava a inocência e a confiança originais.

 Desde a nossa perspetiva atual de ausência de bem-estar, o bem estar é uma meta como diz Jean Liedloff, algo para procurar. No entanto, o bem-estar é o estado primário e normal da criatura, a sensação que acompanha a autorregulação; é, portanto, algo que perdemos, e que temos que buscar e recuperar. E essa noção de ‘algo perdido’ a encontramos nos paraísos perdidos dos mitos das origens. O bem-estar é o estado anímico normal da criatura humana, ao que acrescenta-se a alegria, regozijo, ternura, paixão, prazer. O conceito de ‘felicidade’ que temos é uma saudade desse estado e das suas consequências.

 Nosso conceito de ‘felicidade’ é um conceito errático, porque não repousa no estado de bem-aventurança da autorregulação de nossa genuína integridade psicossomática, e nos leva a estar permanentemente no estado de busca do que não temos nem somos. Desde o ego, a felicidade é uma busca errática, uma ilusão vã, porque a competitividade, a apropriação, a inibição da ação (a submissão) e a dominação, que é para o que o ego é constituído, não produzem nenhum bem estar, e nessa busca errática, a alegria, o regozijo, a paixão e o prazer são ilusões que se abrem caminho evadindo-se da realidade (por isso o sucesso das drogas) ou se desvanecem como fantasmas, quanto mais perto parece que estamos dela. (...)

 “Na descrição da inibição das pulsões na infância, me refiro quase exclusivamente às meninas: à partida pela importância da desconexão e rigidez do útero com relação ao tema chave da corrupção da maternidade que corrompe a sexualidade primaria e infantil, e com ela a capacidade humana de amar; logo porque ao ser tão evidente, tão brutal e de consequências tão patentes, a devastação que essa civilização inflige na sexualidade feminina, nos permite ter a perspetiva da envergadura do desequilíbrio corporal e social que produz.

Então:

* Negada a bondade do prazer e a sua possibilidade efetiva,

* Inibidas as pulsões,

* Suprimidas as práticas espontâneas,

* Relegado o desejo inibido a um inconsciente blindado,

* Deformadas, idealizadas e devidamente educadas as emoções e os sentimentos (pela pressão de um corpo simbólico e uma cultura que intervém para codificá-las e dar-lhe um significado falso, e agora também pela ação pedagógica direta das novas psicologias adaptativas e a difusão massiva da tecno-sexologia).

Então fica estabelecido (cultura, hábitos, família, leis, ordem simbólica) que a única sexualidade humana é coital e adulta e que está vinculada à dominação do homem sobre a mulher e de ambos sobre as criaturas. De facto, o conceito de sexualidade é desvirtuado ao identificá-la com genitalidade, e/ou, já em menor medida, com a reprodução.

De maneira que todas as pulsões e emoções que conseguimos perceber, as projetamos e orientamos em direção a essa única prática sexual, e em direção a esse único conceito de sexualidade associado, quase se poderia dizer identificado, com genitalidade e falocracia.

E assim a sexualidade fica inconsciente e praticamente unida às relações de dominação entre os dois sexos e entre a idade adulta e a infância, como veremos mais detalhadamente no capítulo 5, no qual voltaremos a entrar no que Deleuze e Guattari chamaram edipização.

Todo o restante fica silenciado, não há palavras para falar sobre isso, nem imagens para imaginá-lo.

Assim sucede que as pulsões maternas que se filtram, interpretam-se como transferências da única sexualidade reconhecida, portanto incestuosas e perversas. O desejo materno “refoulado” (reprimido) inconscientemente que é um anelo de simbiose, projeta-se e fica incluído no desejo da sexualidade coital, única que cabe na nossa imaginação, e que propicia-se com o mito da meia laranja que atua de isca para atrair o anelo do amor simbiótico. Porém a relação coital não é um estado de simbiose (no sentido biológico da palavra); ou seja, não é um estado de fusão contínua imprescindível para a sobrevivência; e por mais que quisemos prolongar a lua de mel das primeiras paixões não é como a relação mãe-criatura, já que é uma relação promovida por uma libido prevista para umas fusões descontinuas. A libido da fusão continua é a materna, não a coital. E o casal homem-mulher é uma dupla diferente da dupla mãe-criatura, pela diferente qualidade das libidos que as sustentam. A dupla mãe-criatura é um par simbiótico, uma díade, e tem uma carga libidinal diferente, com uma intensidade específica, relativa à simbiose que deve regular.

 A verdadeira lactancia é uma implementação impressionante da sexualidade humana, da criatura e da voluptuosidade jamais definida (Groddeck) da mulher; e pressupõe uma fusão tão grande que Nils Bergman (nota 13, pag 14) diz que mãe e criatura foram um só organismo; aqui sim se corresponde à imagem das duas meias laranjas que fazem a laranja, a unidade. No entanto, a lactancia é apresentada descafeinada, desapossada dessa libido e do prazer que a acompanha, e com um vínculo apenas corporal. Como se tudo ficasse no contacto pontual e superficial da boca com o mamilo, ocultando o que sucede no interior de ambos corpos. Ou como se somente fora um processo da fisiologia do sistema digestivo.

Segundo a nossa ordem sexual, a libido da maternidade reprimida mais ou menos de forma inconsciente de acordo com os casos, projeta-se ao casal homem-mulher (que não é um par simbiótico). E o que acontece é que o vínculo homem-mulher recarrega-se no imaginário coletivo de uma libido que de alguma forma não lhe corresponde; e por isso a imagem da meia laranja é um mito falacioso e irrealizável.

Disso tudo surgem os “apegos” patológicos dos casais; as relações tornam-se neuróticas porque têm que adaptar-se ao modelo socialmente estabelecido da “meia laranja”, que supõe a translação do amor primário simbiótico mãe-criatura. E segundo esse modelo efetivamente projetamos o anelo libidinal de simbiose, latente desde a nossa etapa primaria, ao casal adulto. Os “apegos” patológicos podem serem muito variados: tabaco, jogo, drogas, chocolate, consumismo compulsivo, sexo sem desejo, possessões, fama, Poder… É a busca insaciável do bem-estar perdido, tratando de atenuar a ansiedade que brota da Falta Básica, a falta do amor primário.”

Cacilda Rodrigañes Bustos – in A Rebelião de Édipo II

Sem comentários: