O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, agosto 11, 2023

A DEVASTAÇÃO DO FEMININO E DA MÃE...



A SOMATIZAÇÃO DO MATRICÍDIO


"Para compreender como a sexualidade feminina pôde permanecer tão reprimida através dos séculos, até o ponto de desaparecer no grau que o fez, é imprescindível perceber que a repressão tem um componente somático.

Qualquer aspeto de nossa condição humana é e será sempre psicossomático; e ainda nos custa pensar e viver nessa perspetiva, socializad@s como estamos numa cultura que artificialmente cinde corpo-mente. Em realidade essa cisão não é mais do que o encobrimento da perda da consciência do que nos passa; mais precisamente é o resultado do que fazem sobre nós para impedir que nós mesmos construíamos uma consciência conforme com o movimento da vida, com o desejo auto-regulador de nosso ser psicossomático. Porque somente então pode-se codificar o anelo frustrado, idealizá-lo e decorá-lo (truquer) com falsas imagens, desvinculando o anelo do seu sentido auto-regulador dos corpos, para inseri-lo no sistema de repressão do Poder. Sempre a devastação, a introdução da carência, é o primeiro.

A perda de contacto com nosso próprio corpo, ou seja, a cisão consciência-corpo foi uma estratégia imprescindível e é uma característica da sociedade patriarcal. Porque o corpo não somente tem sabedoria, mas também muita força, muita capacidade de resistência e rebelião.

Conseguimos chegar muito longe da mão de Reich e de Deleuze e Guattari, compreendendo como se construi o sistema de repressão de nossa civilização, combinando o ‘refoulement’* com a repressão exterior. Sem o ‘refoulement’ realizado inconscientemente, a repressão exterior por si só no poderia explicar o funcionamento da sociedade.

Reich não só descobriu a couraça muscular resultante do ‘refoulement’*, mas também que o ‘refoulement’ dos indivíduos é uma função ao serviço da repressão geral da sociedade; e Deleuze e Guattari explicaram como a repressão geral se insere na criatura humana, atuando sobre a produção de seus desejos, para que ela mesma os ‘refoule’:

A forca de Reich radica em ter mostrado como o ‘refoulement’* dependia da repressão geral… já que a repressão geral precisamente necessita do ‘refoulement’* para formar sujeitos dóceis… A repressão geral somente se exerce sobre o desejo -e não só sobre necessidades ou interesses- através da repressão sexual.
Para atuar sobre o desejo das criaturas, continuavam Deleuze e Guattari, além da instituição da família, fazia falta uma importantíssima operação da desfiguração do mesmo: dar ‘uma imagem enganada (truquée) do que desejamos, convertê-lo em pulsões incestuosas; assim sente vergonha com o desejo, fica entorpecido, já que senão, qual seria a outra forma de conjurar o poder de rebelião e de revolução do desejo?

Durante milénios o desejo feminino-materno das mulheres, e o desejo materno das criaturas foi desfigurado e culpabilizado colocando a etiqueta de incestuoso; ou seja de desejos coitais, que estão, em realidade muito longe dos desejos maternais e dos desejos primais indiferenciados, em geral.


* O substantivo ‘refoulement’ e o verbo ‘refouler’ em francês querem dizer ‘forçar para atrás’. Referido à psique, indica que algo inibimos e logo esquecido, ou seja, colocamos com força para atrás no inconsciente. (...)

"A estrutura caracterológica do homem atual (que está a perpetuar uma cultura patriarcal e autoritária que iniciou 4 a 6 milhares de anos) se caracteriza por uma blindagem contra a natureza dentro de si mesmo e contra a miséria social que o rodeia. Essa blindagem do carácter é a base da solidão, do desamparo, o insaciável desejo de autoridade, do medo, da angustia mística, da miséria sexual, da rebelião impotente assim como de uma resignação artificial e patológica. Os seres humanos adotaram uma atitude hostil ao que está vivo dentro de si mesmos, do qual se afastaram. Essa alienação não tem uma origem biológica, senão social e económica. Não encontra-se na historia humana antes do desenvolvimento da ordem social patriarcal. (…)

O processo sexual, ou seja, o processo de expansão do prazer, é o processo vital produtivo per se. (…).

Nos começos da historia, a vida sexual humana seguia leis naturais derivadas dos fundamentos de uma sociedade natural. Desde então, o período do patriarcado autoritário dos 4 aos 6 últimos milhares de anos, criou, com a energia da sexualidade natural reprimida, a sexualidade secundaria, perversa, do homem de hoje."

Wilhelm Reich -A função do Orgasmo



"Procurar o prazer; evitar a dor é a via geral de ação (alguns diriam Lei) do mundo orgânico. Sem essa procura do agradável, a vida mesma seria impossível. Os organismos se desintegrariam, a vida cessaria." - Kropotkin
 
A maioria dos úteros foram espásticos durante séculos e por isso os nascimentos foram dolorosos.

W. REICH

"O estado de gravidez numa mulher que tornou-se adulta desenvolvendo a sua sexualidade, é um estado sexual prazeroso; a gravidez do útero sobre a nossa cavidade pélvica sente-se como sumo prazer; é um ‘peso’ que não somente não faz sentirmos ‘pesadas’ senão todo o contrario, flutuantes; é uma sensação pré orgástica quase permanente que se expande para com a criatura em gestação e a envolve em fluido amoroso de mesmo modo que o líquido amniótico a envolve.

Porém se a mulher no desenvolveu a sua sexualidade uterina desde menina, quando fica grávida, a gravidez não erotiza à mulher; a expansão do útero após a implantação do embrião e a formação da placenta não conta com o relaxamento suficiente, a pulsão do desejo não ‘balança’ o berço do ser em gestação. A gravidez então não produz esse estado de bem-estar e de prazer permanente, senão pelo contrario, diferentes tipos de incómodos."



Excertos do livro O assalto ao Hades – Casilda Rodrigánez

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