O erro é comum e, nem por isso, se paga menos caro a infantil noção de que o sexo é uma coisa muito natural. Por mais que investidos dos instintos, e mesmo se a fome ataca e tantas vezes parece atravessar os nervos de uma vertigem ancestral, como esse “relâmpago íngreme”, para chegar ao que interessa, ainda é preciso dar a volta a si mesmo, “praticar-se como contínua abertura, o mais atento que custe”, e desembaraçar-se tantas vezes de uma série do preceituário social, mitos infames, uma praga de receios e complexos que nos atam os pulsos das tentações à imaginação, fantasias e o resto. E ainda que a biologia dê o empurrão, até para cair é preciso uma certa graça, alguma convicção, para não fechar os olhos, não acabar sempre do lado da presa. Como para levantar-se depois, e sentir a vontade de buscar alturas mais desafiantes, cair de mais alto, escangalhar-se como um raio e deixar o fogo nos ramos aflitos das árvores como um fruto que, de rachar-se, comova o que tiver de volta com um talento incendiário.
A poesia – de acordo com o verso de que também já se fez uma récita – ensina a cair. Mas hoje quem lê poesia? E a que se lê ainda ensina alguma coisa? Vai-se a ver e, a este nível como a outros, só cumula os enlevos de uma “gente estilística”, sem particular desordem na música ou nos sentidos. Da selvajaria toda de que se ouve falar, fica uma horta, para consumo sexual de subsitência: uns vegetais muito aguados, que tão cedo engordam e são colhidos com o mesmo fastio, alimento para lânguidas aproximações, impulsos ou demasiado tolhidos, tímidos ou quase automáticos, com os nervos rombos, os gestos tacteando, afagando cotos, o que ficou da mutilação dos membros.
Depois há algumas clareiras, raras. A célebre piada de Woody Allen já aponta pelo menos na direcção certa: “Perguntaram-me se o sexo é porco. Respondi: só se for bem feito.” Mas depois, vem o bom gosto, os catálogos da etiqueta, os bonzos da adequação, servindo esse romantismo dócil e bem comportado, que quando fica sem ideias vai buscar brinquedos, chicote, as máscaras de quem às vezes nem a gramática tem atenta ao corpo, de modo a que a boca saiba dizer tudo entre não sentir nada até chegar àquilo que lhe dói.
Há um pavor inocente de ir além, de ferir o pacto, descer um degrau a mais e da provocação encantatória ir dar a uma depravação sinistra, ou, simplesmente, ser pindérico. Não há pecado maior, ao que parece. Mais vale desligar a luz, assim, do que enfrentar o resplendor dessa fronteira tão incerta: os lugares do corpo onde, dentro e fora, se reserva uma intimidante que trafica sentidos entre beleza e susto. “[E] ele disse: não deixes fechar-se a ferida/ – beleza? nada/ que num dia abrupto seja mamífero, magnífico,/ deixa apenas correr o sangue, à frente ou/ atrás da camisa/ ou na zona animal da cabeça ou na uretra em vez de esperma/ ou/ na boca com o frescor do idioma,/ enquanto a parte mais escura do mundo aumenta/ em cada reduto,/ e corra pelos rasgões mostrando o mais oculto”.
Este e outros, vários momentos poderosíssimos, estão entre as linhas de “A Faca Não Corta o Fogo”, de Herberto Helder, o longo poema publicado em 2008 e de que ainda ninguém se refez. Há muito que esta língua não partilhava um assombro destes, perante um homem que exaltava até às últimas consequências o milagre escabroso da beleza, e lembrava como esta perdeu a aura, e como “já se sabia pelo menos desde o Velho Testamento” o quanto ela pode e sabe ser terrível, avançando como um exército, ao ponto de subjugar um homem, então de 77 anos – “setenta e sete vezes êrro” – de tal modo que perdesse toda a vergonha e assumisse o desespero diante de uma mulher só “aparecida”: “catorzinha”, “floral, toda aberta e externa”.
E quanto ao que pudessem vir então dizer – é, de resto, um milagre que a filarmónica do politicamente correcto não tenha ainda vindo tocar-se para estas bandas –, sobre a pedofilia, ele tinha a dizer que sim, que se aceitou ser este um “crime gravíssimo”, mas que, afinal, vistas as coisas da altura menos viciada na estupidez, na organização proibitiva e punitiva: mas como crime, pedofilia, se a beleza, essa, desencontrada/ nas contas, é que é abusiva?/ e se me é defêsa, e terrível como um exército que avança, eu,/ setenta e sete de morte e teoria:/ o acesso à música, o rude júbilo, o poema destrtutivo, amo-te/ com assombro,/ eu que nunca te falei da falta de sentido,/ porque o único sentido, digo-to agora, é a beleza mesmo,/ a tua, proibida, entrar por mim adentro/ e fazer uma grande luz agreste, de corpo e encontro, de ver a Deus se houvesse, luz terrestre, em mim, bicho vil e vicioso”.
Com esta excepção de tal modo admirável que, na verdade, vale por mil, é um facto que a literatura que se escreve entre nós tem deixado escapar à língua portuguesa esse dom nascido do sufoco, essa exaltação e fervor, um gozo pornográfico que ligue os signos ao corpo, porque, como notou Herberto, ainda que tal doesse nas práticas da graça de uma língua analfabeta, plena, seria sempre impossível fazer-se um inferno que nos obrigasse a falar nessa língua. E então, o grande sabor não chega a ser percebido, pois não pode ser dito. Não se perde a fala quotidiana, não se acede a esses lugares com o peso sôfrego, esbaforido da expressão, onde a língua se fere na boca com os nomes e ânsia, contra a armação dos próprios dentes.
Veja-se isto: “e eu reluzo no fundo de um universo que desconheço/ e sou um nome apenas,/ Constelação do Lobo,/ mas saindo desse nome remoto entro logo na mais extraordinária autoria,/ e caçam-me através de velhas florestas côr de púrpura,/ e cortam-me a língua para eu não uivar de um monte a outro o louvor da Loba,/ mas que me importa?/ suba-te pelo dorso, com mão ou sôpro, uma labareda maior do que tu própria,/ farejo-te, lambo-te côna e bôca,/ mordo-te as coxas e o pescoço até ficar bêbado,/ e com sangue na bôca entro em ti e dentro de ti faço um nó enquanto me semeio”.
Mesmo do erotismo não se pode dizer que tenhamos impregnado o idioma de algo que diga respeito às fantasias próprias deste tempo. E se há alguns poetas que sabem fazê-lo, ficam ainda nessa reserva onde tão poucos os ouvem. Não é certamente a poesia de Maria Teresa Horta ou das congéneres mais novas que criam um furioso propósito, a tal ponto que sintamos o gosto tão abundante que “magoe a boca/ e tudo quanto nela se apoie: soluço, respiração, idioma,/ e abele os modos nada cuidadosos do corpo”. Ainda são púdicos esses arrebatamentos. E ao ler a poesia que, feminilmente, tenta ainda reclamar esse outro corpo, sente-se como cora, como, no melhor dos casos, infantilmente correm após uma provocação. E quase tudo são atrevimentos de quem toca mas sempre cativada pela reacção, e que gosta dar-se à semelhança com a ousadia, sem dar esse passo onde se perde a vergonha; e antes do fascínio, a transgressão passará rente a uma criminosa incitação.
E se são tão raros os exemplos desses ecos de ouro que tantas vezes não se sentem ao sol, “à tinta do sol alto ou traiçoeiro”, mas só de joelhos, colhendo “o hálito do ar terrestre”, então, mais importante é fazer notar quando algo assim surge, marcando uma dissonância feroz e, mais do que isso, não perdendo tempo com seduções, ou garantindo que todas as susceptibilidades são postas de sobreaviso.
“Caim/Lilith”, de Sandra Andrade, é um livro assim. Publicado com o selo da Douda Correria, ali mesmo se perde entre arroubos banais, atrevimentos e provocação tão na ordem do dia, o que é uma pena. E, no entanto, também se deve notar que este catálogo que se quer tão aberto e plural enquanto vai gizando um “labirinto de afectos”, tem conseguido fazer o mais difícil, e precisamente aquilo que tem faltado à maioria dos selos independentes que vão segurando a edição de poesia: serem imprevisíveis, deixarem os leitores em suspenso, admitindo que possa haver verdadeiras surpresas.
Sandra Andrade é uma poeta estranha aos círculos regulares da poesia portuguesa. Com uma vida ligada à performance e ao teatro, em 2014 estreou-se na & etc de forma tão discreta quanto segura, e agora dá a facada onde outras poetas só tinham dado unhadas.É apenas o terceiro livro de Sandra Andrade, que se estreou pela mão de Vitor Silva Tavares, em 2014, com “Para Acabar de Vez com a Retórica”. O editor, que morreria no ano seguinte, gabou-se (pelo menos uma vez) de que estava a editar alguém em quem nunca tinha posto os olhos em cima, de quem pouco ou nada sabia, e com quem apenas tinha trocado umas poucas cartas, logo se dando conta de que tinha feito uma dessas descobertas nas quais, décadas antes, fora tão pródigo. Aquele era já um livro em que se viu levantar os pássaros e que, por isso, atirava à esperança uma bela ameaça.
Depois de “doppelgänger” (ed. Debout Sur l’Oeuf, 2016), um livro que não desapontava mas ainda não justificava inteiramente um certo arrepio, é com este diálogo de loucos que nos entrega finalmente às feras.
Caim, já sabemos, está entre as mais intratáveis figuras bíblicas. Um dos primeiros homens nascidos na terra, e fruto de cópula, é o filho primogénito de Adão e Eva. Um tipo que não estava para ficar em segundo fosse no que fosse, e que armou uma cilada ao irmão, Abel, enciumado depois de Deus ter mostrado uma predilecção por este. Embora se tivesse já cruzado a fronteira paradisíaca com a perda da inocência, é com Caim, segundo algumas das primeiras interpretações do Génesis, que o mal começou a trilhar o seu caminho na terra, a semear a discórdia, não recusando ao homem esses reflexos que ele vê de si no espelho da violência e da ganância.
Quanto a Lilith, está é uma personagem bastante mais esquiva. Na Bíblia aparece uma só vez, mas talvez seja menos uma referência clara a sua do que à sua reputação. Porque Lilith vagueia segundo lhe apetece, indo e vindo para satisfazer caprichos algo insondáveis desde há quatro mil anos, confundindo-se com a própria noite e as suas criaturas, num entrançado de visões míticas que a associam a um imaginário demónico, como uma presença inquietante e que foi migrando entre as mais diversas e antigas tradições – aparecida na Antiga Mesopotâmia, assombrou os Sumérios e o Império Acádio, antes de fazer aparições na Assíria e na Babilónia, contagiando os Egípcios, passando pelos Gregos e deixando severas marcas na mitologia Judaica. É no folclore destes últimos que se sugere a hipótese de Lilith ter sido criada a partir da mesma terra que Adão. Esta teria sido a sua primeira mulher, mas uma mulher que, ao contrário de Eva, que viria depois, se recusou a subjugar-se à sua vontade.Criada a partir da costela de Adão, Eva não seria a primeira mulher, mas apenas a primeira a ter a sua vontade agrilhoada. E Sandra Andrade sabe retirar consequências ousadas desta hipótese de ruptura. “Lilith: sou primeira. tive o primeiro homem. nasci da terra, não da costela. trair o primeiro homem, misógino, com um anjo caído. e percorrer os séculos com a esperança de um último. um que atravesse a escuridão sem medo. que devore os demónios que o perseguem. um que ilumine o portão de entrada. que salte a sebe branca por onde trepam também as flores. que transporte a origem de qualquer coisa, insubmisso.”É, assim, como ervas que legam o seu sabor a brisas que passam nas lacunas bíblicas que, uma vez mais, a ficção vai desatar um aroma das confissões entre um par que, com a sua progénie, consiga desafiar aquela linhagem que tem perpetuado uma submissão pavorosa, e que continua hoje a usar o corpo, e particularmente o da mulher, como território ou mapa onde se divisa a autoridade desse tipo de santificadas bestas que se dizem investidas da autoridade divina, ou que, pelo menos, assumem ser os intérpretes da sua vontade.
Logo depois de Lilith começar a despir-se, é Caim quem lhe arranca as vestes que, não só a ocultam, como fazem dela e de toda a mulher desinteressada do seu papel secundário, cumpridor e servil, um demónio que persegue as grávidas e rapta crianças recém-nascidas. “Caim: depois de ela partir o pobre homem adormeceu. veio deus e retirou-lhe uma costela. fez uma segunda mulher à sua imagem. submissa. regressou Lilith e empanturraram-se de maçãs. Adão disse simplesmente sua puta. Eva baixou os olhos e rastejou para toda a eternidade. eis a vossa estúpida árvore genealógica.”Se não se pode dizer que, até aqui, Sandra Andrade tenha feito mais do que ir beber em inspiradas e provocantes distorções da narrativa fundadora do Ocidente, o que este recuo lhe permite é rasgar de forma inequívoca todos esses valores mediadores que, tantas vezes, são usados de forma traiçoeira para ir buscar lá atrás um fio supostamente inofensivo que, na sua música, possa embalar os sentidos e enlear subtilmente os braços e pernas de qualquer ímpeto transgressor.
Fique claro que isto é apenas o modo de ritualizar um corte inevitável, e que é a partir daí que o fulgor pornográfico vai conduzir-nos pela mão, desinteressado de qualquer exposição dialética, desembaraçando-se de uma lógica corrupta, que não pode senão agarrar-se a uma tradição que se fez de constantes emboscadas ao livre exercício das flutuações e humores próprias da paixão, trocando-a por esse amor romântico das donas de casa e das aplicadas criaditas, com o seu caderno de estrelas por bom comportamento. A Caim já o tesão limitado dessas fadas não o comove, e por isso avisa: “as escravas do lar interessam-me a ponta de um corno.”
O corpo é, neste livro, um tumulo profanado. Resgatado da sua simbologia enquanto altar para celebrar uma religião de morte, Lilith goza, vem pela sua reputação abaixo, notando que fodeu este e aquele, se interessou pelas odes e pinturas que ao longo dos séculos a sua visão inspirou, assume caprichos, provoca, usa as partes do corpo nas partes que, em publico, nunca... E se umas vezes só consegue ser banalmente provocante – “tal como Marylin guardo a lingerie no congelador dos dias tórridos” –, tem outros momentos em que arranca à língua a volúpia, e, com bem doseados recursos poéticos, faz a lascívia largar o talher e atacar com as mãos – “com um ramo de cerejeira, chegará a primavera. verte-se leite na pequena jarra. coloca-se a primeira rosa. há ainda uma borboleta na rede, molhada e quente, que bate as asas. incendeia-se. no quarto iluminado lambe-se a cinza”.
“[E]u perfumo os vossos cemitérios lazarentos com galas e tesão”, diz Lilith, que muitas vezes não segura a ânsia transgressora, e fode tudo o que se move – "ao barqueiro de Caronte, fodo-o. extemporaneamente. uma alma penada que assim atravessa a morte eternamente também merece morrer de vez em quando”. Mas se às vezes o risco elabora sem se soltar de alguns clichés, sem que a língua portuguesa chegue a magoar-se nos dentes da boca espantada por um súbito gosto, há outros momentos em que o leitor entrega todos os pontos, e sente ele ciúmes de Caim: “quando encostas a tua boca ao meu ouvido para te vires nesse orgasmo de gueisha ancestral. um vynil em rotação no canto do quarto. respira ainda no meu pescoço essa pequena morte da música.”