Pornografia e Luto foi um discurso escrito para a Marcha
Retomar a Noite que foi parte da primeira conferência feminista sobre
pornografia nos Estados Unidos, em São Francisco, novembro de 1978. Idealizada
pela organização, atualmente extinta, “Mulheres Contra a Violência na
Pornografia e na Mídia’’ (WAVPM), participaram mais de 5000 mulheres de trinta
diferentes estados e nós fechamos o distrito de pornografia de São Francisco
por uma noite. O território foi tomado mas não foi mantido.
Eu queria dizer aqui hoje algo bem diferente do que vou
dizer agora. Eu gostaria de chegar aqui militando, orgulhosa, e possessa de
raiva. Porém, cada vez mais, eu vejo que a raiva é uma sombra esquálida do luto
que sinto. Se uma mulher tem um pingo de noção de sua dignidade intrínseca, ver
pornografia pode fazer com que pouco a pouco ela adquira uma raiva profícua.
Mas estudar pornografia em grande quantidade e profundidade, como eu tenho
feito por mais tempo do que consigo lembrar, deixará esta mesma mulher de luto.
A pornografia é vil por si mesma. Caracterizá-la de qualquer
outra maneira seria uma mentira. Nenhuma pandemia de intelectualismos e
sofismas masculinos pode mudar ou esconder esse simples fato. Georges Bataille,
um filósofo da pornografia (que ele chama de “erotismo’’), diz claramente:
“Essencialmente, o campo do erotismo é o campo da violência, da violação.’’ ¹ O
Sr. Bataille, ao contrário de muitos de seus pares, deixa satisfatoriamente
explícito que a ideia geral na pornografia é a de violentar a fêmea. Usando a
linguagem eufemista tão popular entre homens intelectuais que escrevem sobre
pornografia, Bataille nos informa que “o lado passivo, feminino, é
essencialmente aquele que é dissolvido, como uma entidade a parte.’’ ² Ser
“dissolvida’’ — custe o que custar — é o papel da mulher na pornografia. Os
grandes cientistas e filósofos (homens) que estudaram a sexualidade, incluindo
Kinsey, Havelock Ellis, Wilhelm Reich, e Freud, apoiam esta visão de propósito
e destino. Os grandes escritores (homens) usam mais ou menos formosamente a
linguagem para nos conceber como fragmentos auto-servidos, como se fôssemos
meio-dissolvidas, e daí prosseguem nos “dissolvendo’’ por inteiro, custe o que
custar. Os biógrafos de grandes artistas (homens) comemoram as atrocidades da vida
real que homens cometeram contra nós, como se essas atrocidades fossem
primordiais na produção de arte. E na história, da maneira como homens viveram,
eles nos “dissolveram’’ — custe o que custasse. Nossa esfola e nossa desossa
são as fontes de energia da arte masculinista e da ciência, pois elas são o
teor essencial da pornografia. A experiência visceral de ódio às mulheres que
literalmente não tem limites me levou para além do ódio e das lágrimas; só
consigo falar com vocês de luto.
Todas nós esperávamos que o mundo fosse diferente do que ele
é, não é verdade? Não importa a dificuldade material ou emocional pela qual
passamos enquanto crianças ou adultas, não importa o que entendemos de história
ou os depoimento de sobreviventes sobre como e porquê as pessoas sofrem, todas
nós acreditávamos, confidencialmente, na possibilidade humana. Algumas de nós
acreditamos na arte, ou na literatura, ou na música, ou na religião, ou na
revolução, ou nas crianças, ou no potencial salvador do erotismo ou do afeto.
Não importa o quanto sabíamos sobre crueldade, todas nós acreditamos na
bondade; e não importa o quanto conhecíamos o ódio, todas nós acreditamos na
amizade ou no amor. Nenhuma de nós poderia imaginar ou acreditar nos fatos da
vida como a conhecemos: a rapacidade da ganância masculina por dominação; a
nocividade da supremacia masculina; o desprezo virulento por mulheres que é a
própria fundação da cultura na qual vivemos. O Movimento das Mulheres
forçou-nos todas a encarar os fatos, mas não importa o quão corajosas e
esclarecidas sejamos, não importa o quão longe estejamos dispostas a ir ou
somos forçadas a ir para enxergar a realidade sem romance ou ilusão, ficamos
simplesmente perplexas com o ódio masculino da nossa espécie, sua morbidez, sua
compulsoriedade, sua obsessividade, sua celebração de si em cada detalhe da
vida e da cultura. Nós pensávamos ter compreendido esse ódio de uma vez por
todas, tendo visto sua crueldade extraordinária, desvendado seus segredos, nos
acostumado, superado ou tendo nos organizado contra ele de modo a ficarmos
protegidas dos piores abusos. Nós pensamos que sabemos tudo o que há para saber
sobre o que homens fazem com mulheres, mesmo que nós não possamos imaginar
porque eles fazem o que fazem, quando acontece algo que simplesmente nos deixa
furiosas, fora de controle, de modo que voltamos a ficar aprisionadas como
animais engaiolados na realidade de torpor do controle masculino, da vingança
masculina contra ninguém-sabe-o-que, do ódio masculino contra nossa própria
existência.
É possível saber de tudo e ainda assim não imaginar filmes
snuff.³ É possível saber de tudo e ainda se chocar e espantar quando um homem
que tentou fazer filmes snuff é absolvido, apesar dos depoimento das agentes
infiltradas, as quais ele queria torturar, matar e, é claro, filmar. É possível
saber de tudo e ainda ficar atônita e paralisada ao conhecer uma criança que
tem sido constantemente estuprada por seu pai ou algum parente do sexo
masculino. É possível saber de tudo e ainda se contentar em só poder cuspir de
raiva como um idiota quando uma mulher é processada por tentar abortar sozinha
usando agulhas de crochê, ou quando uma mulher é presa por matar um homem que a
estuprou ou torturou, ou que ainda está estuprando ou torturando. É possível
saber de tudo e ainda querer matar e morrer ao mesmo tempo quando se vê uma
imagem celebrativa de uma mulher sendo triturada num moedor de carne na capa de
uma revista nacional, por mais podre que seja a revista. É possível saber de
tudo e ainda assim se recusar internamente a acreditar que a violência pessoal
e social, culturalmente aceita, contra mulheres é ilimitada, imprevisível,
generalizada, constante, impiedosa, e alegremente e inconscientemente sádica. É
possível saber de tudo e ainda não conseguir aceitar o fato de que sexo e
assassinato estão fundidos no imaginário masculino, de modo que um sem a
iminente possibilidade do outro é impensável e impossível. É possível saber de
tudo e ainda assim, no fundo, se recusar a aceitar que a aniquilação de
mulheres é a fonte de significado e da identidade de homens. É possível saber
de tudo e ainda assim querer desesperadamente não saber de nada, porque encarar
o que sabemos significa questionar se a vida sequer vale a pena.
Os pornógrafos, atuais e antigos, visuais e literários,
vulgares e aristocratas, apresentam uma tese sólida: o prazer erótico para
homens deriva e é baseado na destruição violenta de mulheres. Como escreveu o
mais consagrado pornógrafo mundial, Marquês de Sade (chamado por homens
acadêmicos de “Marquês Divino’’), em um de seus momentos mais contidos e
civilizados: “Não haveria uma mulher na face da Terra que tivesse motivos para
reclamar de meus serviços se eu tivesse a garantia de poder matá-la depois.’’ ⁴
A erotização do assassinato é a essência da pornografia, como se fosse a
própria essência da vida. O torturador pode ser tanto o policial arrancando as
unhas de uma vítima numa cela bem como o assim chamado cidadão de bem empenhado
em foder uma mulher até a morte. O fato é que o processo de matar — e tanto o
estupro como o espancamento são etapas desse processo — é o principal ato
sexual para homens na realidade e/ou na imaginação. Mulheres enquanto classe
devem ficar em bondage, sujeitas ao desejo sexual masculino, porque o
conhecimento do imperativo de matar, seja ele exercitado em plenitude ou apenas
parcialmente, é necessário para alimentar o apetite e o comportamento sexual.
Sem mulheres como potenciais ou reais vítimas, homens têm, no jargão atualmente
utilizado, “disfunção sexual’’. Esse mesmo tema também opera entre homens
homossexuais, onde à força e/ou por convenção designam alguns machos como
fêmeas ou feminilizados. A infinidade de couro e correntes entre homens
homossexuais e a recente invenção de ringues de prostituição de rapazes,
voltados para gays, são provas das persistência da compulsão masculina em
dominar e destruir, que é a fonte de prazer sexual para homens.
A pior coisa sobre a pornografia é que ela revela a verdade
masculina. A coisa mais insidiosa sobre a pornografia é que ela revela a
verdade masculina como se fosse a verdade universal. As caracterizações de
mulheres algemadas sendo torturadas supostamente representam nossas aspirações
eróticas mais profundas. E algumas de nós acreditamos nisso, não acreditamos? A
coisa mais importante sobre a pornografia é que seus valores normalmente são os
valores de homens. Esse é o fato crucial que tanto a Direita masculina como a
Esquerda masculina, de modos diferentes mas mutuamente unidos, querem esconder
das mulheres. A Direita masculina quer esconder a pornografia, e a Esquerda
masculina quer esconder o significado da pornografia. Ambos querem acesso à
pornografia de modo que homens possam ser encorajados e energizados por ela. A
Direita quer acesso secreto; a Esquerda quer acesso público. Mas quer nós
vejamos ou não pornografia, os valores nela expressos são os valores expressos
nos estupros e espancamentos de esposas, no sistema legal, na religião, na arte
e na literatura, na discriminação econômica sistemática contra mulheres, nos
institutos acadêmicos moribundos, e pelos bons, sábios, gentis e iluminados
homens de todos esses campos e áreas. A pornografia não é uma forma de
expressão separada e diferente do resto da vida; é uma forma de expressão em
completa harmonia com qualquer cultura na qual ela desabrocha. E assim o é,
quer ela seja legal ou ilegal. E, em ambos casos, a pornografia opera para
perpetuar a supremacia masculina e crimes de violência contra mulheres porque
ela condiciona, treina, educa e inspira homens a desprezarem mulheres, a usarem
mulheres, a machucarem mulheres. A pornografia existe porque homens desprezam
mulheres, e homens desprezam mulheres em parte porque a pornografia existe.
A mim, a pornografia derrubou-me de uma maneira que, pelo
menos até então, a vida não havia conseguido. Para quaisquer batalhas e
dificuldades que tive na vida, eu sempre quis encontrar uma maneira de seguir
em frente mesmo sem saber como, de viver mais um dia, de aprender mais uma
coisa, de dar mais uma caminhada, de ler mais um livro, de escrever mais um
parágrafo, de ver mais um amigo, de amar mais uma vez. Quando eu leio ou vejo
pornografia, eu quero acabar com tudo. Por que, eu me pergunto, por que eles
são tão cruéis e tão orgulhosos disso? Às vezes, um detalhe me deixa furiosa.
Há uma mostra de fotografias: uma mulher cortando seus seios com uma faca,
esfregando seu próprio sangue em seu próprio corpo, enfiando uma espada em sua
vagina. E ela está sorrindo. E é o sorriso que me deixa furiosa. Há uma capa de
vinil estampada numa enorme vitrine expositora. A foto do álbum é a vista de
perfil das coxas de uma mulher. Apesar de não aparecer explicitamente, sabemos
que sua genital está lá; O título do álbum é “Plug Me to Death’’ (“Me plugue
até a morte’’). E é o uso da primeira pessoa que me deixa furiosa. “Me plugue
até a morte’’. A arrogância. A arrogância a sangue-frio. E como é possível que
essa lógica continue operando, insensivelmente, de maneira completamente
brutal, ilógica, dia após dia, ano após ano, com essas imagens, ideias e
valores sendo despejados, empacotados, comprados e vendidos, promovidos,
perdurando, e ninguém impeça isso, e que nossos queridos garotos intelectuais
defendam isso, e que advogados elegantes debatam por isso, e que homens de todo
tipo dizem não poder e não querer viver sem isso. E a vida, que significa tudo
para mim, torna-se sem sentido, porque essas celebrações de crueldade destroem
a minha própria capacidade de me importar e de ter esperança. Eu odeio os
pornógrafos, acima de tudo, por me privarem da minha esperança.
A violência psíquica na pornografia é insuportável. Ela age
como um cassetete até que sua sensibilidade seja aplacada e seu coração morra.
Você fica anestesiado. Tudo pára, e você olha para as páginas ou imagens e
sabe: isso é o que homens querem, e isso é o que homens sempre tiveram, e isso
é do que homens não querem abrir mão. Como aponta a feminista lésbica Karla Jay
em um artigo chamado “Pot, Porn, and the Politics of Pleasure’’, os homens
podem abrir mão de uvas, alface, suco de laranja, vinho português e atum, mas
homens não abrem mão da pornografia. E sim, é preciso tirar isso deles,
queimar, rasgar, bombardear, demolir seus cinemas e editoras. Você pode
participar de um movimento revolucionário ou ficar de luto. Talvez eu tenha
encontrado a verdadeira razão do meu luto: nós ainda não nos tornamos um
movimento revolucionário.
Hoje à noite iremos caminhar juntas, todas nós, para retomar
a noite, como mulheres fizeram em outras cidades ao redor do mundo, porque, em
todos os sentidos, nenhuma de nós pode caminhar sozinha. Toda mulher caminhando
sozinha é um alvo. Toda mulher caminhando sozinha é caçada, assediada, e
machucada por violência física ou psíquica uma vez atrás da outra. Somente ao
caminharmos juntas poderemos verdadeiramente caminhar com alguma sensação de
segurança, dignidade ou liberdade. Hoje à noite, caminhando juntas, nós
proclamaremos aos estuprados e pornógrafos e espancadores de mulheres que seus
dias estão contados e que a nossa hora chegou. E amanhã, o que faremos amanhã?
Porque, minhas irmãs, a verdade é que nós temos que retomar a noite todas as
noites, ou a noite nunca será nossa. E uma vez que tivermos conquistado a
escuridão, temos que buscar a luz, para retomar o dia e fazê-lo nosso. Essa é a
nossa opção e essa é a nossa necessidade. É uma opção revolucionária, e é uma
necessidade revolucionária. Para nós, as duas são inseparáveis, assim como nós
devemos ser inseparáveis em nossa luta pela liberdade. Muitas de nós já
caminhamos vários quilômetros — duros e intrépidos quilômetros — mas ainda não
fomos longe o bastante. Nesta noite, a cada lufada e a cada passo, devemos nos
comprometer com a jornada: transformar a terra em que caminhamos, de sepulcro e
prisão em uma alegre morada, que é nossa por direito. Nós devemos e iremos fazer
isso, por nós e por todas as mulheres que já viveram.