O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, julho 25, 2019

OS "COLD READER"



COLD READER

"Talvez valha a pena reflectir sobre o conceito de cold reader. Uma amiga mencionou o termo há dias, durante uma conversa, aplicando-o a alguém que ambas conhecemos.
Cold reading é uma espécie de vampirismo de ideias, palavras, gestos, estilos, que uma pessoa faz da outra, através da observação e os utiliza, depois, de forma mimetizada. Sem ter integrado, é óbvio, tudo o que está por detrás de cada um deles: experiência pessoal específica, anos de estudo, uma inteligência concreta ou intuitiva, heranças da linhagem e as múltiplas e em grande parte misteriosas variáveis ligadas a cada pessoa e que a tornam única. O cold reader é hábil nessa prática e passa muitas vezes não detectado, sendo pelo contrário objecto de admiração dos demais.
Na ponta extrema deste fenómeno e com uma acepção particular, situam-se os casos mais gritantes de cold reading de auto-proclamados médiums, videntes, leitores de tarot, certos psicólogos, et cetera, que abundam nas sociedades actuais em crise e se aprimoraram na arte de manipular os seus fragilizados clientes. Isso acontece através de uma desenvolvida capacidade de, através de declarações de carácter geral, ir extraindo a informação que o cliente lhe vai passando sem que este último se dê conta disso. Perante afirmações, de carácter geral, por parte do reader, que se aplicam a um vasto numero de pessoas e situações, o cliente tende a validar subjectivamente os detalhes que se lhe apresentam correctos e a esquecer os outros. De igual modo, a leitura corporal e a gestualidade do cliente em muito auxiliam quem lê.
Existe todo um manancial de livros, guias e orientações que ensinam um cold reader a profissionalizar-se, in twelve easy lessons.
A cold reading, porém, é feita por todos nós em maior ou menor grau e a interinfluência em todos os aspectos acima referidos é um facto inescapável. O nosso software interno busca, constantemente, referências, ideias, padrões de comportamento, icons. Quanto maior for o vazio interior, a falta de cultura ou de honestidade e a insegurança pessoal, mais acentuada se torna essa apropriação instantânea e indevida daquilo que no outro pensamos poder acrescentar algo ao que somos (ou parecemos ser), enriquecer a nossa imagem e performanceperante a audiência.
Como obviar, então, aos efeitos perniciosos do cold reading? Creio que só pela consciência, no assumir das nossas reais qualidades e limitações, num sincero e aprofundado exercício constante de humildade e de respeito pelo outro, poderemos consegui-lo. A busca de criatividade que nos habita deverá ser o nosso timoneiro na auto-descoberta. O que existe – o mundo natural, os estudos para o conhecimento, a intuição, os sonhos e tanto mais – está aí para todos. E cada um tem a oportunidade de neles trabalhar, sem necessidade de roubar ao outro palavras, posições, expressão artística.
Tenho demorado toda uma vida a identificar quem é, no meu núcleo mais próximo, declaradamente cold reader. Não é fácil encarar esse facto, em especial quando existem laços de afecto com o outro. Como duro é encararmos as vulnerabilidades que nos tornam presa fácil do cold reader.
Torna-se porém deveras insuportável, até mesmo doloroso, identificar em nós próprios os indícios dessa prática, por vezes inconsciente, mas sempre aparentada da fraude.



Mariana Inverno, in “Notas à Sombra dos Tempos"

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