LADEADA PELO EDITOR DA ZÉFIRO, ALEXANDRE GABRIEL E A MAFALDA E A MARIANA INVERNO.
Apresentação do livro por Mariana Inverno
“LILITH – A Mulher Primordial” de Rosa Leonor Pedro
“Eu sou Lilith a sina dos iniciados
A impetuosa perdida a conhecida e a obscura
Os livros descreveram-me e vocês não me leram
Eis as minhas visões
Na crista da onda do sétimo dia”
Joumana Haddad
"Com o excerto deste poema de Joumana Haddad dou-vos as boas noites e obrigada por terem vindo acompanhar este dia tão esperado. Saúdo a autora, Rosa Leonor Pedro, com um imenso abraço. E saúdo igualmente a Ana Ferreira Martins, cujo trabalho em prol das mulheres mais desfavorecidas é bem conhecido e a Zéfiro na pessoa do seu editor, Alexandre Gabriel.
Cabe-me a dificílima tarefa de tentar apresentar aquilo que percepciono como uma espécie de magnum opus da Rosa Leonor, até hoje. Conheço e sou amiga da escritora há muitos anos e sei, sem sombra de dúvida, que a temática deste livro corresponde ao impulso fundamental da sua alma, impulso que ela, ao longo da vida, tem vindo a tentar descodificar e passar para palavras.
Uma obra é grande quando é sobretudo genuína, quando nasce duma pulsão anímica central no seu autor e encontra, por entre as dificuldades e limitações da encarnação, o caminho para o verbo.
Foi isto o que aconteceu com este livro, por isso este é seguramente um dia esperado pois “Lilith A Mulher Primordial” é um livro que fazia muita falta. Que se saiba, ninguém em Portugal escreveu até hoje sobre o mito, sobretudo com a frontalidade e a sincera busca da verdade que encontramos na obra hoje lançada.
Trata-se um livro que se debruça sobre uma tentativa ancestral de assassinato, pois dividir o que é uno, é tentar matar o que só pode ser e existir integralmente na unidade que lhe é própria.
O pior dos pesadelos é deixar passar a vida sem a assumir inteiramente e é isso que a autora indica ter sido o destino trágico da mulher desde há milénios, artificialmente dividida em dois estereó-tipos: a Santa e a Prostituta. Optar unilateralmente por qualquer um deles é negar vida à unidade que o feminino ancestral representa.
Mas vamos ao princípio da história.
A humanidade sempre tentou encontrar respostas para a sua problemática existencial através de mitos. E do fundo dos tempos chega-nos o de Lilith, a primeira mulher de Adão, criada juntamente com ele do pó da terra para habitarem o Jardim de Eden. Lilith era uma mulher autónoma, completa em si mesma que não aceitava ser dominada pelo homem, o que originou um colossal conflito, conflito esse que a levou a abandonar o Paraíso. Nem os anjos enviados pelo Criador para a convencerem a aceitar uma reconciliação (nos termos pretendidos por Adão) tiveram qualquer sucesso e, assim, a Lilith, excomungada pela sua rebelião, foi imposto pela religião o estatuto de demónio, sombra nocturna, condenada a vaguear pelos reinos da vida olvidada, a escuridão. Fugiu para o Mar Vermelho, local que, segundo a tradição hebraica, era habitado por demónios e espíritos malignos.
Ora, para não correr mais riscos, o Criador desta vez fez nascer uma nova mulher para Adão, a nossa bem conhecida Eva, saída de uma costela do homem e que reunia em si doçura, submissão e total obediência ao homem.
Encontramos vestígios do mito de Lilith em várias culturas e tradições. Lilith foi Deusa adorada na Mesopotâmia e na Babilónia e, nessas tradições, ela aparece associada à força dos elementos, sendo conhecida como Lilitu.
Foi a Rainha dos Céus na Suméria onde representava o poder da mulher, poder exercido sobre si mesma, símbolo da independência e da autonomia femininas.
Cerca de 2.000 anos A.C. encontramos no épico babilónico de Gilgamesh aquela que é talvez a referência mais antiga à personagem. Também é referida na Cabala e numa obra da Idade Média, período em que o mito ganha força, o Zohar ou Livro do Esplendor (sec.XIII), bem como no Talmude Babilónico.
Numa edição de 1978, sob o título “The Babylonian Talmud”, publicada pela Socino Press em Londres e organizado pelo rabino Epstein, pode ler-se:
“…ela não teria aceitado uma posição inferior em relação ao homem, pois sendo criada da mesma forma, exigia os mesmos direitos, não aceitou uma posição submissa e assim desentendeu-se com Adão. No primeiro acto sexual Lilith não aceitou ficar por baixo, aguentando o peso do corpo do companheiro e exigiu ter também o direito ao gozo e ao prazer sexual. Como não foi atendida nos seus anseios revolta-se e pronuncia a palavra “inefável” que lhe deu asas por meio das quais fugiu do Jardim do Éden. Assim Lilith abandonou Adão com quem não se entendia e foi para as margens do Mar Vermelho. Adão ficou só e desamparado, receoso da escuridão opressora. Daí haver uma relação entre Lilith e a Lua Negra, a escuridão da noite, por isso a associação que dela se faz com a coruja, o pássaro nocturno. Segundo a tradição talmúdica, Lilith é a “Rainha do Mal”, a “Mãe dos Demónios” e a “Lua Negra”.
Nalgumas narrativas de influência cristã encontramos Lilith como a serpente, que convenceu Eva a comer do fruto proibido. Aliás, em certas versões do mito, Lilith , aparece como serpente a induzir o novo casal ao pecado, por ciúmes.
Ora é bom lembrar que a serpente, muitas vezes, como nesta versão, associada ao mal, à morte e escuridão foi um símbolo muito rico em diversas culturas onde representava a sabedoria e a renovação, bem como a cura com Asclépio, ligada portanto à medicina e aos processos curativos e, nesta acepção, chegou aos nossos dias..
Eva, submissa, obediente, sem estatuto próprio, modelo
feminino ideal pelo padrão ético judaico-cristão, ou seja, a mulher, esposa e
mãe, submissa e direcionada para o lar é considerada pela religião predominante uma força construtiva, ao contrário de Lilith, que representa a força destrutiva e a tentação. Por isso, como vimos que esta versão a faz regressar ao paraíso em forma de
serpente a fim de se vingar de Adão e Eva, tentando-os.
É sabido que o desconhecido sempre assustou a humanidade. Quando algo ou alguém, pelo seu poder ou alcance ultrapassa o
controle ou a compreensão dos seres humanos, passa a constituir uma ameaça. A saída mais fácil é diabolizá-los.
Assim aconteceu com Lilith, fenómeno que se estende, de algum modo, até aos dias de hoje, desde os primórdios do patriarcado.
A tese da autora é de que, confrontados com o misterioso poder da mulher, que os transcendia, os patriarcas utilizaram a fórmula da cisão, dividindo conceptualmente a mulher em duas: a Santa e a Prostituta.
A primeira é a mulher dita decente, aceite, legitimada, a mãe e a esposa, a mulher que segue os princípios morais criados pela sociedade patriarcal, a mulher que reprime a sua sensualidade, esquece o seu legado ancestral e se conforma com uma meia-medida de ser. Trata-se, portanto de um ser que oferece todas as garantias de vassalagem e fidelidade à contraparte masculina, em detrimento da sua identidade essencial que nem sabe que perdeu.
A Prostituta é a mulher perdida, a servidora na casa de alterne, aquela para cuja vivência da sexualidade não há limites de nenhuma ordem e que, portanto, pode exercer livremente o jogo sexual com os seus clientes, satisfazendo-os.
A que preço? O da selvagem invasão do seu corpo por sucessivos utilizadores e o da proscrição social.
Vemos assim a santidade do sacrifício, da abnegação e da desistência de si mesma como ser completo e autonomo em Eva,a Santa, versus a maldição da sensualidade assumida, da autonomia de um ser soberano e integral, em Lilith.
O objectivo desta metodologia utilizada pela sociedade patriarcal é óbvia: Dividir para reinar!
Dividida em duas, a mulher rapidamente se esqueceu da sua completude e optou, ou foi obrigada a fazê-lo, por um dos esterótipos.
Essa cisão ganhou força inconscientemente dentro de cada uma, através dos milénios e hoje, essa mulher cindida continua a arrastar o seu destino frustrado pelas páginas dos nossos dias. É a ferida maior, e a autora diz-nos “A ferida da mulher é a ferida da alma do mundo.”RL
Não resisto a fazer um pequeno àparte: tive a sorte, a imensa fortuna de ter sido moldada, na minha infância e adolescência por uma Santa (a minha amada Mãe) e por uma Prostituta (uma hóspede na casa de meus pais, a qual me iniciou, pelo exemplo, nos caminhos da compaixão sem julgamento pelo sofrimento alheio, da dádiva sem motivos ulteriores, da manifestação calorosa dos afectos e a não negociação da sua liberdade de movimentos). À influência que estas duas importantes referências exerceram sobre o meu ser no início da minha vida fiquei a dever, no contexto de tudo o que me limita, alguma liberdade de espírito e abertura aos muitos cambiantes da vida e da grande variedade de seres e situações que tenho vindo a encontrar na minha rota. Estou a escrever sobre esta minha experiência e espero vir um dia a apresentar-vos essa obra.
Importante compreender que a parte cindida da mulher a que o patriarcado chamou Prostituta não é Lilith. Essa é uma etiqueta maliciosamente e com motivos ulteriores, colada à figura do mito,
A mulher integral vai buscar características à Santa e à Prostituta.
Voltando a “LILITH A Mulher Primordial”, trata-se de uma nova narrativa de Lilth, pela voz de alguém que entende essa força a nível cellular e que adianta a original teoria da cisão da mulher desde há milénios, bem óbvia no mundo em que vivemos.
Não nos podemos esquecer que cada ser humano representa um amontoado de crenças com pernas e que muito daquilo que irradiamos sob o ponto de vista comportamental radica na moldagem do que recebemos como ensinamentos e principios de vida, desde que nascemos.
Foi-nos imbuída desde a infância a noção do que é ser uma mulher perfeita , noção essa acompanhada habitualmente de adjectivos como: obediente, submissa, decente, recatada, pura, de um só homem, sacrificada, esquecida de si, os outros primeiro, sexualmente passiva pois está-lhe vedado, moralmente, o acesso ao prazer sensual…
A autora lembra:
“A sensualidade existe nas relações e na vida. A sensualidade como emoção erotizada existe no amor mais puro, quero dizer neutro, entre todos os seres,”
Pois a sensualidade é parte intrínseca da natureza humana, ela revela-se pelos sentidos, pelo prazer dos sentidos, expressa-se no gosto pelas coisas sensíveis.
Em síntese, do fundo dos tempos emerge esta voz antiga, subterrânea, selvagem, livre e desassombrada que dá a cada mulher, se ela for capaz de a assumir conscientemente, a força e a determinação para recuperar a soberania perdida. E em que consiste essa soberania? Na integralidade do seu ser onde naturalmente se unem a Sombra e a Luz, na descoberta de quem é realmente, que vozes cantam ou rugem em si e o que, em liberdade, lhe compete empreender para assumir o seu destino.
Este livro traz a marca de uma verdade pessoal. É mais falado do que escrito, pois a Rosa Leonor expressa o que sente, o que lhe aflora do sentir com uma simplicidade coloquial. Nada parece deter essa energia que sai dela a jorros, extravasando os limites impostos pela norma. Talvez como a própria voz de Lilith, calada e sufocada durante tanto tempo, que urge redescobrir para que a mulher se resgate a si mesma.
Defende ainda a autora que não há salvação para este mundo conturbado e que a paz não reinará sobre a Terra, se a mulher não se encontrar primeiro a si própria, se não redescobrir o poder e a missão do seu género, pois ela é aquela que dá à luz e que conhece em profundidade os códigos secretos da Mãe Natureza.
O livro está dividido em 9 capítulos que procuram contribuir com os diferentes aspectos que a autora considera importantes para uma melhor compreensão do mito: a essência de Lilith, a sua identidade
e as diferentes facetas que as várias culturas e religiões lhe foram atribuindo através da História, com especial ênfase para a era patriarcal, o confronto Lilith-Eva e o que daí resultou na muher dividida, cindida, dos nossos dias. E ainda a denúncia do falseamento que o feminismo actual confere às supostamente mulheres livres dos nossos dias, sobretudo no mundo ocidental. Pois se nele, pela mão das primeiras feministas, se começaram a verificar certos avanços libertadores, a mulher ocidental moderna não se deu conta da grande armadilha em que caiu, ao confundir a mimetização do comportamento masculino com a sua própria emancipação e evolução.
"Não preciso parecer um homem para ser uma mulher. E não preciso estar contra os homens para ser a favor das mulheres" Joumana Haddad
a que Rosa Leonor acrescenta
“Podemos dizer que, o que a mulher moderna vive hoje é o que
lhe é consentido pela sua (de)formação machista e falseada liberdade
feminista. E, assim ambos os sexos estão muito longe, e separados,
da sua real capacidade de amar, que começa no respeito, e no
direito de escolha de cada um viver de acordo com a sua natureza.”
O livro termina com os testemunhos de várias mulheres que têm acompanhado o pensamento da Rosa Leonor através da vida.
Todos esses testemunhos são como janelas abertas para uma existência feminina que o paradigma central instituído continua a não ver com bons olhos, Rico em citações muto oportunas, encontramos nele o eco do pensamento esclarecido de, entre outros, Joumana Haddad, Natália Correia, Joseph Campbell, Riane Eisler,, Clarissa Pinkola Estés, Camile Paglia e Joelle de Gravelaine.
Não me posso alargar demasiadamente nesta apresentação, pois mais amigos irão falar. Gostava no entanto de salientar que, a meu ver, o grande contributo da busca da Rosa Leonor Pedro expressa neste livro com tanto sentir é a possibilidade de cada mulher ser tocada de algum modo, de algo novo soar dentro de si, um questionamento, uma interrogação, um despertar mais lúcido para o que foi o seu caminho desde que abriu o olho, a forma como a família, a igreja, a sociedade a foram moldando como se o que lhe inculcavam como princípios de vida (em especial obrigações e deveres) fosse a verdade última do seu destino na Terra. Como se a sua situação subalterna em relação ao homem representasse uma inferioridade e um posicionamento naturais.
Para chegarmos a essa mulher integral, completa, assumida na sua natureza rica e misteriosa, de novo na posse do seu legado ancestral, teremos de entrar com coragem e humildade na parte mais obscura do nosso ser onde se esconde o rastro dessa divisão arquetípica que nos enfraqueceu e implementou também a divisão entre nós, mulheres.
Pois em verdade, aparentemente emancipadas ou não, residentes no mundo ocidental ou na Índia ou na Arábia, somos ainda mulheres patriarcais.
“As mulheres têm de perceber que viveram um apagão histórico e cultural, e que ele se reflectiu ao nível da sua consciência humana, ao perderem o contacto com a sua essência feminina e a sua sexualidade sem culpa. O que não aconteceu com o homem,uma vez que sempre conviveu naturalmente com o seu potencial sexual, sem culpa.
Para garantir o domínio dos homens, as mulheres foram obrigadas pelo Sistema a seguir os padrões do masculino,
Depois de vários séculos terem sido, apenas, esposas honradas, ou prostitutas desprezadas, têm de ser hoje advogadas e médicas e ministras, frias e racionais, e fugir dequalquer espelho que a outra mulher, a que ousa ser verdadeira e a confronta na sua originalidade e instintividade, essa mulher selvagem e indomável que vive dentro de cada uma delas, quando são confrontadas.
Estas são as mulheres ainda prisioneiras dos amantes, ou traídas e espancadas pelos maridos, caladas pelos chefes, desprezadas pelos colegas ou exploradas pelos patrões, abusadas em casa, ridicularizadas em grupo, sobrecarregas de deveres e tarefas, escravas de uns pobres imbecis, pacóvios escritores de cordel ou de bordel, tanto como de senhores administradores de grandes empresas.”Rosa Leonor
À autora, minha amiga de longa data, expresso aqui profunda admiração pelo seu imenso esforço pessoal no sentido de apoiar a mulher nessa recuperação da sua integralidade.
E, para terminar, a todas nós e a todas as mulheres do mundo eu digo: na descida às profundezas, a noite é escura e difícil mas, se atravessada com empenho sincero na busca da verdade, essa mesma noite abrirá novos olhos em nós."
MARIANA INVERNO
Estoril, 25 de Janeiro de 2020