Clara Não
Ilustradora, ativista, autoraBem-vindas, meninas, à vossa introdução à prática de Dona de Casa. Como sabem, sendo nós mulheres, nascemos com o gene de aptidão biológica para cuidarmos da casa. Estas aulas servirão como um guia de boas práticas, para usufruírem da melhor forma do vosso dom biológico.
INÍCIO DE AULABem-vindas, meninas, à vossa disciplina de introdução à prática de Dona de Casa.
Como sabem, sendo nós mulheres, nascemos com o gene de aptidão biológica para cuidarmos da casa. Estas aulas servirão como um guia de boas práticas, para usufruírem do vosso dom biológico.
Por outro lado, os homens — e não se arrisquem a dizer que há mais géneros, que toda a gente sabe que não há diversidade — nasceram para serem servidos e, portanto, são incapazes de fazer a lide da casa ou de serem pais que partilham tarefas de família e domésticas.
Isto esclarecido, ficam aqui os 10 mandamentos sagrados para a biologicamente determinada dona de casa.
1. Fazer um pequeno almoço digno de hotel para a família
Qualquer dona de casa que se preze, acorda duas horas antes de toda a gente para fazer um pequeno-almoço digno de hotel para o esposo, e crianças, sendo o caso, com o que ele mais gosta: ovos mexidos, salada de fruta, panquecas, churros e sumo de laranja espremido natural. Deverá sentir uma alegria imensa em viver para servir.
Se os vossos maridos gostarem da refeição que lhes confecionaram, deverão acender uma velinha a Paulo Otero. Se não gostarem, pode haver algum problema com o vosso gene biológico de dona de casa e convém ir ao médico. Podem estar a sofrer de histeria ou a precisar de serem sangradas para sair o mal do vosso corpo.
2. Criar lanches para os miúdos sempre criativos e diferentes
Atenção, não se pretende apenas meras sandes recortadas em forma de urso, mas sim baixos relevos nutricionais das personagens da Disney favoritas das crianças. O desafio aqui pode ser grande, como por exemplo, encontrar corantes naturais para o azul de Frozen.
Se as vossas crianças tiverem de comprar snacks das máquinas, vocês falharam redondamente como mães. Têm de seguir, nas vossas redes sociais, pelo menos cinco contas de especialistas católicas sobre maternidade.
3. Estar sempre disposta a mais um filho se o marido (e Deus) assim quiser
As mulheres, como sabem, são naturalmente parideiras, da família, do Estado, de Deus. Uma mulher só é uma mulher completa se for mãe. Se não desejarem mais filhos, mesmo tendo capacidade económica para mais, deverão ter duas sessões semanais com um padre, escolhido pelo vosso marido, pois estão com um desequilíbrio emocional: o desejo pela maternidade faz parte do que é ser mulher. Abracem a vossa feminilidade.
Se tiverem desejo de abortar, ou seja, um sentimento de necessidade, aí será preciso internamento estatal, em que serão obrigadas a ver um discurso pré-gravado de Paulo Otero quase a gritar sobre o crime da autonomia corporal da mulher, duas vezes ao dia, com intervalos para rezar o Rosário. Não podem arriscar uma excomunhão da Igreja, como família de bem que têm de ser.
4. Renegar decotes e roupa curta
A esposa vive para o seu marido. Mesmo quando vos parece que ele não vos liga, só quer saber de futebol e lê o jornal sem olhar para vocês, lembrem-se que ele está atento ao mundo para vos proteger melhor. (Toda a gente sabe da política e violência que o futebol acarreta, temos de ter atenção).
O respeito ao marido inclui que nunca, mas nunca, seja incentivada a atenção de outros homens através da roupa usada. É conhecimento comum que o assédio é culpa da mulher, que com a sua roupa alicia a atenção. A mulher é sempre culpada, desde Eva até agora. Ao homem tudo é perdoado, porque, coitadinho, não se consegue aguentar. Os homens são seres incríveis, já que a nível sexual não têm controlo sobre as suas vontades, mas a nível profissional são os mais aptos para cargos profissionais de topo com alto poder de decisão, que exigem um alto nível de controlo.
5. Realizar passatempos úteis à vida do lar
É importante ter cuidado com o tipo de passatempos que se realizam, para manter a dignidade da mulher. Alguns dos passatempos mais bem vistos são tricô, renda, pintura, estudo de manuais de decoro, e a leitura de análises de passagens da Bíblia sobre ter bom espírito. Não se deve ler filosofia contracorrente, como a marxista, que só nos tolda a mente com opiniões corrosivas da vida que conhecemos. Concertos de rock e discotecas não devem ser frequentados.
6. Não cobiçar o envolvimento em decisões políticas
Quanto envolvimento pode uma mulher digna ter em decisões políticas? Nenhum, a não ser promover uma boa educação da mulher. É a única resposta válida.
Por muito que possam votar (ainda), o mais sensato será votarem no mesmo partido que o vosso marido vota. Ele, sim, é um ser feito para ter pensamento crítico. Ele nunca poderia ser dono de casa naturalmente, porque tem demasiadas capacidades intelectuais para tal. (Não vale a pena contestar, é biológico.)
Assim, devem ir com o vosso marido votar e não comentar com ninguém as vossas opiniões políticas sobre nada, porque podem danificar o gene lindo de donas de casa que vos foi dado por Deus.
7. Não conversar com amigas sobre intimidade ou política
Podem falar sobre meteorologia, receitas de culinária, ou mesmo sobre a melhor forma de fazer o calcanhar das meias. No entanto, não devem falar da intimidade, nem de política ou de ideias revolucionárias.
Se alguma amiga começar com essas conversas indevidas, mudem logo de assunto ou comentem como o cabelo dela está bonito. Com certeza tirará tempo para dizer a que cabeleireiro foi e a conversa muda de rumo.
8. Não desejar outras aspirações profissionais
Se a dada altura do vosso tempo como donas de casa sentirem que querem ter um emprego diferente, mas o vosso marido não concorda com a mudança, esses pensamentos tratam-se de delírios do GDDC (Gene Dona de Casa), uma perturbação comum do GDDC.
A exposição a bons cortinados de linho deverá ser suficiente para tratar estes delírios. Se isso não resolver, o segundo passo é o vosso marido oferecer-vos um colar de jóias vindas de antigas colónias subjugadas por Portugal.
9. Não ter pensamentos fugitivos em relação à vida de dona de casa
Se no processo deste estudo acharem que ser dona de casa não é para vocês, pensem outra vez, porque estão com certeza enganadas. Se a dúvida persistir, deverão consultar um dos consultores oficiais que Paulo Otero tão gentilmente disponibilizou, com
o apoio da Família do Coração Imaculado de Maria. Poderão estar com algum problema psicológico grave, mas não se apoquentem, pois a Familia do Coração Imaculado de Maria cura gays, por isso certamente também curará donas de casa com desejo de emancipação.
Além disso, não há registo de mulheres que tenham sobrevivido como mulheres ao contrariar estes mandamentos. As pessoas que resultam daí vivem em comunidades com realidades fora do nosso mundo perfeito. Confusas, com ideias livres, sem rumo, a fazerem festas sem decoro e só têm filhos se lhes apetece. Fujam desta libertinagem. Nas regras está a segurança!
Devote-se a Nossa Senhora, reze um terço e pense: fosse Maria casada com o pai do filho, a viver como dona de casa, não teria sido obrigada a dar à luz Nosso Senhor num estábulo no meio dos animais!
10. Se se sentir infeliz, sorria, porque a sorrir é mais bonita.
Termino aqui a aula. Se tiverem questões é normal, já que estão a iniciar o curso. No entanto, não há espaço para as fazerem, pois as mulheres não nasceram para ter questões, mas para seguir ordens e para cuidar da casa e da família.
Ser mulher é ter na sua biologia o gene de dona de casa. Nunca se esqueçam desta barbaridade. Se daqui a três dias as vossas dúvidas persistirem, observem com atenção os catálogos da Silampos e da Celar. Com certeza o vosso maior desejo passará a ser adquirir a melhor panela antiaderente portuguesa.
Obrigada. Podem prosseguir para o autocarro que vos leva a casa, já que, como mulheres que são, os vossos maridos não vos deixam conduzir.
FIM DE AULA
Logo que a aula acabou, a professora vomitou de repúdio. Despediu-se da escola e decidiu viver livre de convenções de género e limitações de papéis de sociedade pré-concebidos para ela. Muitas mulheres fizeram o mesmo, vivendo unidas, em irmandades ou em famílias tradicionais e não tradicionais, sempre livres e com amor.
A biologia dita a existência de vida e não regras sociais para se viver a vida. As regras foram criadas pelas pessoas, podem ser mudadas ou anuladas por elas também.
A única coisa que não deve ser nunca anulada é o direito à liberdade de escolha e à autonomia corporal. Porque não, nem tudo é reversível. A liberdade das mulheres não pode ser reversível.