O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, agosto 26, 2023

A ALIENAÇÃO DA LIBIDO MATERNAL ...




O MITO DO PAR COMPLEMENTAR OU DA ALMA GÉMEA, OU SEJA - “O mito da meia laranja destaca o engano inconsciente no qual vivemos, e que é alimentado de modo subliminal com todas as imagens audiovisuais de nossa cultura, para produzir em nosso imaginário coletivo, a mudança  do par mãe-filh@, é uma mudança da libido (original e maternal) para o par-casal, que ao produzir-se de maneira coletiva e inconsciente, ganha uma consistência impressionante, porque retro-alimenta-se por todas as partes, inclusive por tudo o que surge da Falta Básica.

A mudança da libido dirigida para o  o par-casal canaliza o anelo e a ansiedade do desejo materno reprimido, e o coloca num impasse.
Paralelamente o desejo genuíno simbiótico torna-se uma vergonha, é insultado e caluniado, como sendo o pior dos vexames e desprezo, o que significa retirar-lhe o seu direito à existência, ignorá-lo e qualificá-lo de coital, enganando as mães com uma falsa interpretação das suas emoções, e às crianças retirando delas o significado do seu pranto, ou seja anulando-lhes o seu único mecanismo de resistência e de aviso, para que permaneçamos insensíveis a ele.

Como o desejo materno é tão forte, trata-se de suprimi-lo da melhor maneira possível e assegurar que nada seja filtrado. Por isso, como diz Michel Odent no “O bebé é um mamífero” todas as culturas patriarcais inventaram estratégias para reprimir a marca (ou estigma) que é o grande momento da pulsão do desejo materno. Entre as estratégias milenares para manter a mãe separada da criança estava a de proibir a sucção do colostro (o primeiro leite da mãe) porque fazia mal (e a medicina ayurveda, por exemplo, recomenda como substituto um caldo com mel), a que a mulher estava impura e/ou tinha o demónio (a oxitocina) dentro, que entrava com a leite dentro da criatura; e por isso a mãe, antes de passar pelo rito da purificação o do churching* (a bênção da igreja católica que considerava a mãe impura e culpada) que costumava ser feito depois de oito dias do nascimento, quando precisamente a marca e as grandes descargas de oxitocina tinham sido reabsorvidas), não podia dar de mamar nem ter a sua criança com ela. Toda uma estratégia servia para amortecer a força e a paixão do desejo materno. Esse procedimento esteve vigente até há pouco tempo em Inglaterra. Segundo Odent faz falta fazer uma revolução colostral* para mudar o mundo.

E assim promove-se socialmente um “amor materno” espiritual, desconectado das pulsões corporais, para canalizar a criança para uma via libidinalmente asséptica, muito diferente do amor materno verdadeiro que segue o ritmo cego e todo poderoso do mundo visceral (Leboyer, “Por um nascimento sem violência”); e é assim que acontece uma robotização da fisiologia da criatura que de facto compromete seriamente a lactância materna. Ao mesmo tempo normaliza-se o sofrimento do parto, sobre o qual Leboyer declara: é puro invenção, já que o parto sem dor está aí, a despeito dos autoritários de dos violentos procedimentos (Ibidem).

Tudo isso implica necessariamente a construção de uma falsa consciência de nossos corpos de mulheres, uma representação dos mesmos que é uma mentira, e uma socialização de facto numa grande desconexão interna. Ainda que não tenhamos noção disso, o útero imobilizado nos decompõe, nos desintegra por dentro, deixa-nos em pedaços.

E essa mentira socialmente estabelecida sobre o corpo da mulher, complementa-se com essa calúnia, também socialmente normalizada, apesar de ser incrivelmente falsa e mentirosa, que considera as pulsões sexuais do bebé incestuosas e possessivas, e como se elas tivessem o mesmo sentido e significado que as pulsões adultas.

Desse modo corrompe-se não só o amor materno simbiótico como da criança também. A mãe torna-se uma impostora quando diz sim a todas as mentiras somatizadas e socialmente instituídas que ela absorveu nela. Ao longo de séculos fez-se acreditar às mulheres que elas tinham que parir com dor e que as criaturas nascem de um pecado original, ou dizendo de outra forma, com impulsos perversos que precisam serem controlados. Essa é a presunção de inocência da criatura humana!

As mulheres, no caso de sentir prazer durante a maternidade, não o dizem e sentem vergonha por isso. Se elas sofrem com a separação das suas crianças, calam-se e ocultam os seus sentimentos, porque pensam que não há razão para isso, que é normal que levem as crianças a passar pela inspeção médica e a metê-la nos seus cubículos.

A sexualidade da mulher que não é coital (ela é a sexualidade do movimento do útero), é auto erótica (danças do ventre) e vinculada à maternidade, mas não se fala disso, não se define, (Groddeck) e ela desaparece; e em vez dela constrói-se um modelo de mulher impostora, que por suposto deve comprazer-se pelo desejo falocêntrico do macho ao mesmo tempo que é capaz de reprimir e infligir sofrimento às suas crianças, seja mudando o seu sentir inicial (alterando a sua predisposição emocional natural) (pela perda da empatia maternal), seja, nos casos de haver insuficiente desconexão e insensibilização, aceitando resignadamente a inibição (repressão) do seu desejo materno e do bebé.

Na cultura ocidental cristã, esse modelo de mulher e de mãe está representado pela Virgem Maria mãe de Deus, que se converte no paradigma da corrupção do amor materno e da mãe impostora:

1. Para ser ‘pura’ e ‘imaculada’, e construir o modelo de mulher sexualmente assética, diz-se que a Maria concebe sem desejo sexual, sem conhecer homem, por obra e graça do Espírito Santo.

2. Logo dá à luz milagrosamente, ao sair Jesus do seu ventre como um raio de sol pelo cristal sem rompê-lo nem manchá-lo (Catecismo do Padre Ripalda) sem que o útero se abra e sem a criatura ter que tocar o trato vaginal processo que torna numa mulher impura.

3. A imagem da Virgem Maria apresenta-se como a Nova Eva que não se deixa tentar pela la serpente (símbolo ancestral da sexualidade da mulher) senão que calca a sua cabeça (‘Imaculada ‘ de Rubens, etc.)

4. A assepsia da sexualidade (podemos perceber que a assepsia é uma espécie de limpeza que ocorre preventivamente) e ela explica-se como Maria Concebeu sem pecado original; tão importante é esse aspeto que se tornou a saudação cristã convencional:

“Ave Maria puríssima/sem pecado concebida.” O adjetivo ‘puríssima’ faz referência expressa à ausência de pulsões sexuais. A Imaculada Conceição da Virgem Maria é um dogma da Igreja católica."


in A SEXUALDIADE 
E O FUNCIONAMENTO DO DOMINIO PATRIACAL
A  Rebelião de Edipo - de Cacilda Rodrigáñes Bustus 

Pag 85-88

*colostro ou ao primeiro leite das fêmeas dos mamíferos, logo depois do parto (ex.: anticorpos colostrais

Tradução do espanhol por  Sabine Carlotti



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