(…)
“Ouvimos a nossa voz com a garganta.
Ouvimos a voz dos outros com os nossos ouvidos.
A literatura define o que nos permite ouvir a voz do outro com a garganta. Por seu intermédio, o que não se pode partilhar é recebido, comunicado directamente de mundo íntimo para mundo íntimo.
É assim que a comunicação literária passa através da voz irreconhecível.
A literatura, à superfície social do tempo, certamente, mas também na profundidade vertical da experiência íntima, está ligada à impossibilidade de reconhecimento.
Sugiro, por fim a que a oralidade silenciosa corresponde provavelmente à voz impossível entre os vivíparos. A voz impossível é a que pertence ao corpo do primeiro mundo, a que nada na água do ventre materno, ignora o ar atmosférico, ignora o sopro que nesse ventre começa a erguer-se, ignora a pulmonação que nesse ventre ocorreria, ignora o ritmo que, a partir dessa saída para o ar inverosímil, galgaria o pulsar do seu coração.
O pequeno vivíparo não tem capacidade de emitir voz no sopro: Por isso ouve. É mera obediência. Ouve sem nunca ter pensado em falar. Ouve a voz materna, que não pode voltar a captar.
A literatura e a voz da garganta, a voz que passa directamente de garganta apra garganta, de angústia para angústia, a voz sem lábios nem ouvidos, ou ainda a oralidade sem pulmões, a "psique anaeróbica", tem a ver com a mulher impossível de conhecer, a mulher, por isso mesmo, irreconhecível, a mulher que precede, a mulher que espera um filho. A mulher grávida, a mulher gorda, a mulher cada vez mais gorda das grutas do Paleolítico, tem a ver com a mulher invisível: é a mulher da cena final. Por outras palavras, a mulher-cepa tem a ver com a mulher de Outrora, quando copulava com o pai. Ora, ninguém viu a cena que o gerou, para poder afirmar que reconhece os traços dos rostos que se uniram e a que os seus próprios traços tão estranhamente correspondem.”
In Histórias de amor de outros tempos
Pascal Quignard
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