O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, janeiro 19, 2013

A VOZ MATERNA




(…)
“Ouvimos a nossa voz com a garganta.

Ouvimos a voz dos outros com os nossos ouvidos.

A literatura define o que nos permite ouvir a voz do outro com a garganta. Por seu intermédio, o que não se pode partilhar é recebido, comunicado directamente de mundo íntimo para mundo íntimo.
É assim que a comunicação literária passa através da voz irreconhecível.
A literatura, à superfície social do tempo, certamente, mas também na profundidade vertical da experiência íntima, está ligada à impossibilidade de reconhecimento.
Sugiro, por fim a que a oralidade silenciosa corresponde provavelmente à voz impossível entre os vivíparos. A voz impossível é a que pertence ao corpo do primeiro mundo, a que nada na água do ventre materno, ignora o ar atmosférico, ignora o sopro que nesse ventre começa a erguer-se, ignora a pulmonação que nesse ventre ocorreria, ignora o ritmo que, a partir dessa saída para o ar inverosímil, galgaria o pulsar do seu coração.
O pequeno vivíparo não tem capacidade de emitir voz no sopro: Por isso ouve. É mera obediência. Ouve sem nunca ter pensado em falar. Ouve a voz materna, que não pode voltar a captar.


A literatura e a voz da garganta, a voz que passa directamente de garganta apra garganta, de angústia para angústia, a voz sem lábios nem ouvidos, ou ainda a oralidade sem pulmões, a "psique anaeróbica", tem a ver com a mulher impossível de conhecer, a mulher, por isso mesmo, irreconhecível, a mulher que precede, a mulher que espera um filho. A mulher grávida, a mulher gorda, a mulher cada vez mais gorda das grutas do Paleolítico, tem a ver com a mulher invisível: é a mulher da cena final. Por outras palavras, a mulher-cepa tem a ver com a mulher de Outrora, quando copulava com o pai. Ora, ninguém viu a cena que o gerou, para poder afirmar que reconhece os traços dos rostos que se uniram e a que os seus próprios traços tão estranhamente correspondem.”

In Histórias de amor de outros tempos
Pascal Quignard

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