O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

terça-feira, setembro 27, 2011

UMA LONGA, LONGA HISTÓRIA DE ATROCIDADES...



"Eu venho desde ontem,
do escuro passado e esquecido
com as mãos amarradas pelo tempo,
e a boca selada das épocas remotas.

Venho carregada das dores antigas,
Guardadas por séculos,
arrastando correntes longas e indestrutíveis…

Eu venho da obscuridade,
do poço do esquecimento,
com o silêncio nas costas,
do medo ancestral que tem corroído a minha alma
desde o princípio dos tempos…

Venho de ser escrava por milénios,
escrava de maneiras diferentes:
submetida ao desejo de meu raptor na Pérsia,
escravizada na Grécia pelo poder romano,
convertida em vestal nas terras do Egipto,
oferecida aos deuses em ritos milenares,
vendida no deserto
ou avaliada como uma mercadoria…

Eu venho de ser apedrejada por adúltera nas ruas de Jerusalém,
por uma multidão dos hipócritas,
pecadores de todas as espécies,
que clamavam aos céus pela minha punição…

Tenho sido mutilada em muitos povos
para privar o meu corpo dos prazeres
e convertida em animal de carga
trabalhadora e parideira da espécie…

Têm-me violado sem limites,
em todos os cantos do planeta,
sem levarem em consideração a minha idade madura
ou juventude, minha cor ou estatura…


Tive que servir ontem aos senhores,
submeter-me aos seus desejos,
entregar-me, doar-me, destruir-me
para esquecer-se de ser uma entre milhares.

Fui cortesã de um senhor em Castilha,
Esposa de um marquês
E concubina de um comerciante grego,
Prostituta em Bombaim e nas Filipinas
E esse tratamento foi sempre igual….


De um e de outros sempre fui escrava,
De um e de outros sempre fui dependente,
menor de idade em todos os assuntos,
Invisível na História mais antiga
e esquecida na História mais recente
Não tive a luz do alfabeto…

Durante muitos séculos,
reguei com as minhas lágrimas a terra
que devia cultivar desde a infância….

Tenho percorrido o mundo em milhares das vidas
que me têm sido entregues uma a uma
e tenho conhecido todos os homens do planeta:
Os grandes, os pequenos, os bravos e cobardes,
Os vis os honestos, os bons e os terríveis
Mas quase todos levam a marca do tempo…

Uns manejam vidas como patrões e senhores,
Asfixiam, aprisionam e aniquilam
Outros subjugam almas,
comercializam com ideias
assustam ou seduzem
manipulam ou oprimem…

Conheço-os a todos.
Estive perto de uns e de outros
Servindo cada dia,
Recolhendo migalhas,
Humilhando-me a cada passo,
cumprindo o meu karma…

Tenho percorrido todos os caminhos
arranhando paredes, ensaiando silêncios
tratando de cumprir as ordens de ser
como eles querem,
mas não tenho conseguido…

Jamais foi permitido que eu escolhesse
O rumo da minha vida.
Tenho caminhado sempre em disjunção
entre o ser santa ou prostitua…

Tenho conhecido o ódio e os inquisidores
que em nome da santa madre igreja
condenam o meu corpo ao seu serviço
às infames chamas da fogueira.

Têm-me chamado de múltiplas maneiras:
Bruxa, louca, adivinha, pervertida, aliada de Satã,
escrava da carne, sedutora ninfomaníaca
culpada de todos os males da Terra…

Mas segui vivendo,
arando, colhendo, costurando, construindo,
cozinhando, tecendo, curando, protegendo,
parindo, criando, amamentando, cuidando
e, sobretudo, amando…

Tenho povoado a Terra de senhores e escravos,
de ricos e mendigos, de génios e idiotas,
mas todos tiveram o calor do meu ventre,
meu sangue e seu alimento
e levaram com eles um pouco da minha vida…

Consegui sobreviver à conquista brutal e sem piedade
de Castilha nas terras da América.
Mas perdi meus deuses e a minha terra
e meu ventre pariu gente mestiça
depois que o meu patrão me tomou à força…

E neste continente mestiço prossegui a minha existência
carregada de dores quotidiana negra e escrava.
No meio da fazenda me vi obrigada
A receber o patrão quantas vezes ele quisesse
Sem poder expressar nenhuma queixa…

Depois fui costureira,·camponesa, servente, agricultora
Mãe de muitos filhos miseráveis,
vendedora ambulante, curandeira,
babá, cuidadora de velhos,
artesã de mãos prodigiosas, tecelã bordadeira,
operária, professora, secretária, enfermeira….

Sempre servindo a todos
convertida em abelha ou semeadeira,
cozendo as tarefas mais ingratas,
moldada como uma jarra por mãos alheias…
Vieram milhões de mulheres juntas escutar a minhas queixas.
Falou-se de dores milenares,
dos enormes grilhões que os séculos
nos fizeram carregar nas costas
e formamos com todos os nossos lamentos
um caudaloso rio
que começou a percorrer o Universo,
afogando a injustiça e os esquecimento…

O mundo ficou paralisado,
os homens e mulheres não caminharam.
Pararam as máquinas, os tornos,
os grandes edifícios e as fábricas,
ministérios e hotéis, oficinas, hospitais,
e lojas e lares e cozinhas…

Nós mulheres finalmente descobrimos:
Somos tão poderosas quanto eles
E somos muito mais numerosas sobre a Terra!
Mais que o silêncio, mais que o sofrimento,
Mais que a infância e mais que a miséria!

Que este cântico ressoe
nas longínquas terras da Indochina
nas cálidas areias de África,
no Alasca e na América Latina

Proclamando a igualdade entre os géneros
Para construir um mundo solidário
-diferente, horizontal, sem poderes -
a conjugar a ternura, a paz e a vida
a beber da ciência sem distinção.

A derrotar o ódio e os preconceitos,
O poder de uns poucos, as mesquinhas fronteiras,
a amassar com as mãos de ambos os sexos,
o pão da existência…"



Jenny Londoño

1 comentário:

Anónimo disse...

Texto impressionante...