Depois do zen, as montanhas eram montanhas, e as árvores
eram árvores. Enquanto a mulher estava na montanha, aprendendo, tudo era
mágico. Agora que ela desceu da montanha, o pêlo supostamente mágico foi
queimado no fogo que destrói a ilusão, e chegou a hora de "depois do
zen". A vida deve voltar ao plano prático. Mesmo assim, a mulher tem o
tesouro da sua experiência na montanha. Ela tem o conhecimento. A energia que
estava enfaixada pela raiva pode ser empregada em outras atividades. Ora, a
mulher que conseguiu se entender com a raiva volta à vida cotidiana com novos
conhecimentos, com um novo sentido de poder viver sua vida com maior
habilidade.
No entanto, um dia no futuro, alguma coisa — um olhar, uma
palavra, um tom de voz, a sensação de estar sendo tratada com condescendência,
de não estar sendo apreciada ou de estar sendo manipulada contra a própria
vontade — qualquer uma dessas coisas emergirá novamente. E então novamente a
mulher se incendiará.
A raiva residual de
antigas feridas pode ser comparada aos efeitos traumáticos de um ferimento por
estilhaços. A pessoa pode conseguir catar praticamente todos os pedaços de
metal estilhaçado do míssil, mas os caquinhos menores permanecem. Seria de se
pensar que, se a maioria foi retirada, tudo bem. Mas não é assim. Em certas
ocasiões, esse caquinhos minúsculos se torcem e retorcem, causando uma dor
semelhante à do ferimento original (o ferver da raiva) mais uma vez. Não é, porém, a imensa raiva original que
provoca esse jorro, mas são ínfimas partículas dela, elementos irritantes
deixados na psique que nunca são completamente eliminados. Eles causam uma dor
que é quase tão intensa quanto a do ferimento original. É assim que a pessoa se
retesa, temendo o golpe violento da dor e, de fato, gerando mais dor. Eles se
envolvem em manobras drásticas em três frentes: uma que tenta conter o evento
objetivo; uma que tenta conter a dor que se espalha , a partir do antigo
ferimento interno; e uma terceira que tenta garantir a segurança da sua posição
mergulhando de cabeça numa posição psicológica de defesa. É demais pedir a um
único indivíduo que enfrente o equivalente a um bando de três e tente no
cautear todos eles ao mesmo tempo.
É por isso que é imperativo parar no meio de
tudo isso, recuar e procurar a solidão. É demais tentar lutar e lidar ao mesmo
tempo com a sensação de que se foi atingido nas vísceras. A mulher que escalou
a montanha retira-se, trata do evento anterior em primeiro lugar, em seguida do
evento mais recente, toma decisões acerca da sua posição, sacode o pêlo, ergue
as orelhas e volta a aparecer para agir com dignidade. Nenhuma de nós pode
fugir inteiramente da nossa história. Sem dúvida, podemos mantê-la num segundo
plano, mas ela está ali do mesmo jeito. No entanto, se você quiser agir em seu
próprio benefício, você superará a raiva e acabará se acalmando e se sentindo
bem. Não perfeita, mas bem. Você será capaz de seguir em frente. Ficará para
trás o tempo da raiva em estilhaços. Cada vez você lidará melhor com ela, pois
saberá quando chegar a hora de voltar a procurar a curandeira, de escalar a
montanha, de se livrar das ilusões de que o presente é uma reapresentação exata
e calculada do passado. A mulher lembra-se de que pode ser feroz e generosa ao
mesmo tempo. A raiva não é como o cálculo renal — se esperarmos tempo
suficiente, a dor passa. Não e não. Você precisa tomar a atitude correta. Só
assim ela passará, e sua vida será mais criativa.
(...)
CLARISSA PINKOLA ESTEESMULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS
2 comentários:
Boa noite. Sempre a ler reflectir acompanhar totalmente isolada de momento.. . É imperativo para mim lê lá. Obrigada pela partilha. Eu respiro fundo a cada texto leitura.
Somos a nossa melhor companhia...
Enviar um comentário