O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, junho 04, 2023

dar-receber-devolver - como a humanidade se perdeu



A degeneração da raça humana pela perda das suas qualidades fundamentais.
A reciprocidade como elemento chave da libido - a amizade ou é recíproca ou não é amizade...


"Quando uma pessoa recebe amizade, confiança e afeto, está a receber algo que é próprio do ser humano e que emana da sua integridade psicossomática; ou seja, a amizade e o afeto não é uma norma de uma cultura, nas tornou-se "norma" ao cultivar-se algo que brota de forma espontânea de nossas pulsões orgânicas, as que promovem a expansão do afeto sincero e da conduta amorosa entre os congéneres;  expressões convertidos em olhares, caricias, beijos, abraços, palavras, risos (das que sobem do ventre, não das que provém das máscaras), mimos, desejo, paixão, e toda uma gama diversa e infinita - pois é específica de cada processo ontogénico - de cumplicidades e de complacências.
Um olhar amoroso conecta-nos com um bebé de 2, 3, 4 meses, que corresponde connosco com o seu olhar amoroso; sorrimos para ele e devolve-nos também o sorriso; encostamos o nosso rostro contra o seu corpinho, e ele ri a gargalhadas. O género humano somos feitos dessa forma.

A reação de qualquer ser humano que não tenha sofrido algum processo de degeneração grave, frente a uma entrega afetiva, é responder da mesma maneira, sincera e espontânea, que o bebé de três meses, com a entrega recíproca da sua amizade, da sua confiança e do seu afeto.
A reciprocidade é um elemento chave da libido; realiza a função de formação do grupo humano desde a origem da espécie, centos de milhares de anos antes de que apareceram as normas e leis de qualquer civilização humana. Essa função social da libido é chave porque graças a ela nossa espécie fixou-se na cadeia evolutiva e estabeleceu-se na biosfera. Como dizia Goytisolo, “um homem só, ou uma mulher são como pó, não são nada”. Sem grupo, sem tecido social do cuidado e do apoio mutuo, a humanidade não tivesse sobrevivido.
A amizade, a entrega do afeto e da confiança, desde sempre foi considerado uma qualidade básica da condição humana. E também sabemos que a amizade ou é recíproca ou não é amizade. Romper a reciprocidade ao trair a um amigo ou a uma amiga, era algo imundo e sórdido, uma prova de degeneração do ser humano. Obviamente como dizia Cervantes, sempre foi mais fácil enganar a quem confia em ti que ao cauteloso, e por isso mais rentável.
A reciprocidade é uma qualidade da vida em geral:
Amo naturalmente a quem me ama-me, dizia Lope de Vega, resumindo com o seu génio poético, num verso único, o facto de que a reciprocidade é caraterística das coisas da vida.
Uns índios de uma tribo chinook do nordeste do Pacífico (terra de Seattle) tinha um término, ‘potlach’, (derivado do nootka ‘patshatl’), que era algo equivalente a nosso ‘doar’; porém eles precisavam que isso não significasse somente ‘doar’ senão ‘doar-receber-devolver’.
Segundo Marcel Mauss a noção de ‘potlach’ é a mesma que a noção do ‘hau’, referida pelo maori Ranapori ao antropólogo Elsdon Best em 1909. O maori Ranapari explicou a Best, que se alguém dá algo para ti, não podes ficar com o ‘hau’ desse algo, senão que tens que devolvê-lo a ele. O ‘hau’ é algo assim como a empatia -alguns o traduzem por ‘espírito’- que acompanha o objeto oferecido, não é o objeto em si.
O facto de que essas tribos indígenas tivessem um conceito para designar o que em nossas línguas são três ações diferentes, para as que precisamos de três verbos diferentes (‘dar-receber-devolver’), significa que na sua observação da fenomenologia da vida não contemplavam três senão uma única ação, um único processo.
A sabedoria e intuição dos povos indígenas que viviam em contacto com a mãe terra, lhes permitia compreender que os seres humanos devemos viver em sintonia como o ‘hau’, que não podemos viver contradizendo de maneira sistemática o modo de funcionar da natureza, que para o sua manutenção e desenvolvimento, dotou-se de todos os sistemas que tal funcionamento precisa."

A sexualidade e funcionamento da dominação - Cacilda Rodrigáñez"


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