"Gostava que me deixassem em paz. Que não insistissem em fazer-me sentir obrigada a algo, seja por meio de palavras, de olhares de reprovação ou de sorrisinhos de escárnio.
Não tenho que ir ao funeral de fulano ou beltrano ou sicrano. Não tenho que engrossar um tétrico aglomerado de enganosos abutres, rostos hipocritamente sorumbáticos, expressões compungidas quase sempre requintadamente escondidas sob óculos escuros. Não tenho por que mostrar às pessoas o que sinto em relação ao morto nem tenho de fingir que somos todos muito unidos e amigos nas “horas de desgraça”.
E por que é que a morte há-de ser uma desgraça? A sê-lo, mais desgraça é para quem cá fica, que a saudade por vezes é osso duro de roer. Ou não, se habitarem dinheiros e terrenos no pensamento dos herdeiros. Também não tenho que ouvir o sacerdote, peça chave do dramatismo religioso, que sempre tem o condão de transformar um evento natural num acto lúgubre e sinistro em que as palavras de uma dita divindade parecem escavar à força um profundo buraco na alma de cada um.
E por que hei-de exultar de alegria com um nascimento? Mais depressa me entristeço. Um novo ser neste mundo decadente, nesta civilização antropocentrista, neste mar de egoísmo e iniquidade, é muito mais um infortúnio do que uma satisfação. Um novo ser que será, desde logo, iniciado na insidiosa arte do viver no faz-de-conta, no quero-posso-e-mando, no vencer a qualquer custo. Um novo ser que terá, desde o berço, o seu pensamento programado, o seu organismo conspurcado, o seu valor intrínseco sufocado, a sua humanidade destruída. Muito menos tenho que ir a baptizados. São violentos. Um pobre ser indefeso, inocente e puro, é submetido a um ritual de iniciação religioso que, a menos abra ele os olhos suficientemente cedo, o tolherá para o resto da vida.
Quanto aos casamentos, a que não vou nem em pensamento, vai a minha preferência para os divórcios. São estes últimos o único laivo de sensatez em todo o processo de encenação vitalícia a que os indivíduos se submetem e a que chamam casamento. O absurdo e o ridículo do acto, desde a preparação à consumação e à vida subsequente, são o que me leva a acreditar que o ser humano, além de revolver-se na mais tosca estupidez, é ainda profundamente imaturo. Casamento é parafernália, é ritual, é tradição, é padrão, é falta de autoconhecimento, de maturidade, de visão global, cósmica. Casamento não é amor, não é prova de amor, não é pilar de suporte para a descendência, não é obrigação nem dever nem devoção. Casamento é negócio. Negócio pessoal, social, político, económico e financeiro.
Tudo, afinal, é negócio. Tudo. O nascimento, a morte, o casamento, o baptizado, a religião, a política, a cultura, a educação. O dia dos namorados e o carnaval, a páscoa e o natal, a noite das bruxas que antes era a véspera de todos os santos, os dias mundiais disto e daquilo. Os aniversários e as bodas de prata e de ouro e de diamante. O amor, o sexo, a solidariedade, a amizade, os princípios, os valores. A ética, a arte, a beleza, a justiça e a fraternidade. As homenagens, os tributos, as celebrações, as comemorações. Tudo é negócio. Até a alma, que é artigo que se vende ao diabo a troco de favores…
De tudo isto me desobriguei. É inútil qualquer tentativa de dissuasão."
Isabel Conde
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