O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

segunda-feira, janeiro 29, 2024

Só então a centelha cai na Terra....


in “Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos”
Olga Tukarczuk


As centelhas provêm da própria fonte de luz e são construídas com a mais pura claridade – é o que dizem as lendas mais antigas. Quando um Ser humano está prestes a nascer, uma centelha começa a descer. Primeiro, voa através da Escuridão do espaço cósmico, depois pelas galáxias e, por fim, antes de cair na Terra, a pobre esbarra na órbita dos planetas. Todos eles contaminam a centelha com diferentes características enquanto ela escurece e se apaga.
Plutão é o primeiro a traçar a moldura daquela experiência cósmica e a revelar os seus princípios básicos – a vida é um acontecimento momentâneo, ao qual se segue a morte que, um dia, permitirá à centelha libertar-se da armadilha; não há outra saída. A vida é uma espécie de polígono experimental de provas muito exigentes. A partir daí, tudo o que fazes irá contar, todos os pensamentos e todas as acções, não para seres posteriormente castigado ou premiado, mas sim porque tudo isso constrói o teu mundo. É assim que a máquina funciona. Seguidamente, durante a Queda, a centelha atravessa a cintura de Neptuno e perde-se nos seus vapores nebulosos. A título de consolação, Neptuno dá-lhe todo o tipo de ilusões, uma memória adormecida da saída, o sonho de voar, fantasias, narcóticos e livros. Úrano dota-a com a capacidade de se revoltar – a partir daí, tal dará testemunho da lembrança de onde a centelha provém. Quando a centelha passa pelo anel de Saturno, torna-se claro que no fundo tem à sua espera a prisão. Campo de trabalho, hospital, regras e formulários, corpo doente, doença fatal, morte da pessoa amada. Já Júpiter oferece-lhe a consolação, a dignidade e o optimismo, e um belo presente: tudo vai acabar bem. Marte acrescenta força e agressividade, que decerto vão dar jeito. Ao voar perto do Sol, fica encandeada e, da remota e vasta consciência, restar-lhe-á somente um Eu pequenino, minúsculo, separado do resto, que assim permanecerá. Imaginava as coisas da seguinte maneira: um torso, um ser mutilado com asas rasgadas, uma Mosca atormentada por crianças cruéis; quem sabe como sobreviverá na Escuridão. Graças às Deusas, a seguir é Vénus quem se encontra na linha da Queda. A centelha recebe dela o dom de amar, a mais pura das compaixões, a única coisa que a pode salvar a ela e às outras centelhas. Graças aos dons de Vénus, poderão apoiar-se e unir-se. Mesmo antes da Queda, tropeça ainda num pequeno e estranho planeta, parecido com uma Lebre hipnotizada, que não gira em torno do seu próprio eixo, mas se desloca velozmente, com o olhar fixo no Sol – é Mercúrio. Este dá-lhe a faculdade de comunicar. Ao passar pela Lua, recebe dela algo tão intangível como a alma.
Só então a centelha cai na Terra, e logo se reveste de um corpo. Humano, animal ou vegetal. As coisas são assim.

in “Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos”


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