A APROPRIAÇÃO DAS DEUSAS
"Deuses suprimidos se transformam em demónios e, frequentemente,
são com esses demónios que logo defrontamos quando nos voltamos para nosso
interior. Além disso, o poder que foi especialmente suprimido na principal
arremetida de nossa tradição é aquele que na maior parte do mundo está
representado na imagem da grande Deusa. Ela é chamada na Bíblia (II Reis,
23:13) de "a abominação". Mas as próprias imagens dessa mesma Bíblia
provêm de um contexto mitológico mais antigo no qual a Deusa era suprema. As
imagens dela e das divindades da natureza, suas filhas, foram objecto de
apropriação e transformadas de modo a se harmonizarem com uma tradição estrita
e implacavelmente patriarcal, de orientação masculina, da qual todos os
símbolos, consequentemente, foram colocados às avessas.
Quem, por exemplo,
deseja o amplexo de Abraão? Quem já ouviu falar de um homem dar nascimento a
uma mulher, como Adão a Eva? Há em todo este símbolo a produção e o arquitectar
falacioso de uma campanha deliberada de sedução, transferindo a mente e o
coração do feminino para o masculino, isto é, das leis da natureza para as leis
e interesses de uma tribo local. Além disso, como já sugeri, é certamente
desconcertante a psique ter que reagir a imagens que expressam uma coisa para o
coração e são apresentadas à mente programadas num outro significado oposto.
Este paradoxo produz uma espécie de situação esquizóide e, sem dúvida, uma das
principais razões para a prosperidade da psicanálise actualmente é essa
confusão e esse curto-circuito das imagens simbólicas com as quais os sistemas
conscientes e inconscientes de nossas mentes tiveram de ficar em contacto.
Um
infortúnio extra para a saúde de nossa civilização pode ser visto no próprio
Dr. Freud, que foi seriamente infectado tanto quanto a Bíblia por aquilo que
agora é chamado de chauvinismo masculino. O movimento feminista pode exercer
uma importante influência neste caso, estendendo-se, inclusive, ao campo da
simbologia religiosa. Entrementes, no rebanho cristão, foi decerto um grande
triunfo para Maria o fato de a despeito da resistência da comunidade
protestante bibliólatra — para a qual a mariolatria tem exactamente o mesmo
significado que a "Abominação" tinha para Elias — ter sido ela capaz
de avançar mais e mais para a órbita da genuína divindade.
A assunção de Maria
ao céu foi em 1950 declarada como dogma a ser objecto de crença como
acontecimento histórico. Deve-se, ademais, considerar, a título de uma imagem
para contemplação, sua coroação no céu. De fato, Maria é até encarada como
co-salvadora, co-sofredora com seu Filho redentor da vida. A linha divisória
aqui entre "veneração" e "culto" está se tornando cada vez
menos fácil de ser definida. As regras do jogo estão mudando sensivelmente.
Caso venham algum dia a ceder completamente, uma efectiva vitória terá sido
granjeada sobre o provincialismo patriarcal de nosso passado (Extra ecclesiam
nulla salus!) e a favor de um futuro mais amplamente humanizado, graças
simplesmente a uma transformação dos símbolos essenciais através da imaginação
mitológica redesperta e reactivada de homens e mulheres nos nossos dias.
Joseph Campbell
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