O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, janeiro 17, 2015

A nossa trágica herança grega...continua...


Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher

de Nicole Loraux

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o paradoxo da morte gloriosa das mulheres é que a única morte bela é a viril; também, para conquistar a inatingível ¡déos gynaikon, esposas e moças exercitam-se na andreia; ora, é precisamente aqui que a feminilidade as espreita e, sem que elas o saibam mas para maior edificação dos espectadores, as domina num instante, o momento de uma palavra, de uma escolha muito significativa do texto trágico. (...)
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É então pela garganta que, em Eurípides, Neoptólemo, como bom sacrificador, imola a virgem, golpeada no ponto fraco das mulheres. Sem dúvida não estava ao alcance da tragédia destruir um discurso predominante: não é ainda na garganta ou, se se preferir, no pescoço, que desde a época arcaica Aquiles fere mortalmente Pentesiléia?* A garganta ainda e sempre, na guerra como no sacrifício: escolha significativa, sem dúvida, numa tradição nutrida pela epopéia, onde o corpo viril se oferece inteiro aos ferimentos fatais. Para esclarecer a regularidade – dir-se-á a monotonia? – dessa reiteração, sem dúvida seria necessário procurar-lhe a lei fora do universo trágico, junto à reflexão ginecológica dos gregos onde a mulher é imaginada entre duas bocas, entre dois colos, onde o comportamento errático da matriz embarga brutalmente a voz na garganta das mulheres, onde muitas moças em idade de ser nymphai se enforcam para escapar à sufocação temível que as enlouquece no interior de seu corpo. (...)
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se o historiador se chama Tucídides e seu assunto é a Grécia; relato de guerra e de decisões políticas, a historiografia tucidídia nada tem a ver com as mulheres, mesmo em vida. Acredita-se que Heródoto era menos categórico a esse respeito, mas, de maneira igualmente previsível, ele se interessava apenas pelas mulheres bárbaras ou esposas de tiranos, e por sua morte só quando violenta – ou pretexto para alguma exposição sobre um rito fúnebre anormal; mesmo nestes casos, trata-se de menções breves, não decorrentes de uma elaboração mais desenvolvida. Há, porém, um gênero cívico que, comprazendo-se institucionalmente em confundir a fronteira do masculino e do feminino, libera a morte das mulheres dos lugares-comuns onde a confinava o luto privado. Falo da tragédia, onde, como é verdade em Heródoto, as mulheres só morrem de morte violenta- (...)
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As mulheres trágicas morrem violentamente. Com maior exatidão, uma mulher conquista sua morte nessa violência. Morte que não seja somente o fim de uma vida exemplar. Morte que lhe pertença como sua, como a Jocasta de Sófocles, que a infligiu “ela mesma a si mesma”, ou que, de modo mais paradoxal, lhe foi imposta. Uma morte brutal, cuja comunicação se faz sem frases – assim, para a esposa-mãe de Édipo, “basta uma palavra, tão curta para dizer quanto para ouvir: está morta, a nobre figura de Jocasta” – mas cujas modalidades, dolorosas ou chocantes, ensejam uma longa narração.(...)
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na tragédia, a morte das mulheres tem acesso ao discurso tanto quanto a dos homens, convém observar que no interior do espectro das modalidades de morte violenta se opera de fato uma distinção entre homens e mulheres: aparece então uma ruptura do equilíbrio entre os sexos.
Do lado dos homens, a morte, salvo algumas exceções – a de Ajax e de Hêmon, que se suicidam, a de Meneceu, que se oferece para ser a vítima de um sacrifício – toma a forma do assassínio: assim, é de fato um assassínio – oikeios phonos, morte em família – a morte formalmente guerreira dos filhos de Edipo, que se matam mutuamente no campo de batalha. Quanto às mulheres, apesar de eventualmente serem mortas, como Clitemnestra, como Mêgara, é muito maior o número daquelas que recorrem ao suicídio como a única saída numa desgraça extrema: Jocasta e, ainda em Sófocles, Dejanira, Antígona e Eurídice; Fedra e, também em Eurípides, Evadne e Leda, no segundo plano da Helena; no caso das moças, o cútelo do sacrifício é o instrumento privilegiado da morte, podendo-se acrescentar à coorte das esposas suicidas o grupo de virgens sacrificadas, de Ifigênia a Polixena, passando por Macária e pelas filhas de Erecteu. Não estarei aqui privilegiando o assassínio, entretanto, não me impedirei de evocar suas formas trágicas: por ser mais equitativamente partilhado entre homens e mulheres, sem dúvida o assassínio é um critério menos pertinente da diferença dos sexos em sua relação com a morte. Sendo assim, no tocante às mortes femininas, darei relevo principalmente ao suicídio das esposas e ao sacrifício das virgens.
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Trechos do Livro: Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher,
de Nicole Loraux

Pentesiléia?* - Rainha das amazonas

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