A MULHER SAIU DE UMA ESCRAVIDÃO, A DO LAR… PARA ENTRAR NOUTRA ESCRAVIDÃO, A DO TRABALHO, COM A ILUSÃO DE
QUE SERIA LIVRE…
Um século depois…vemos não só a desmistificação da ideologia
como da teoria construída no ideal…Em 1969 ainda apanhei com os resquícios
dessa ideologia em teoria muito bem elaborada, para chegar ao século XXI e ver como
a Mulher Verdadeira continua muito longe da sua essência. Resta-me pensar se a
luta feminista assim desencadeada nestes regimes totalitários e falocráticos
não ajudou a destruir ainda mais a mulher primordial. A Mulher essência, a
Mulher como representante do Princípio Feminino e da Deusa Mãe, reforçando o
ideal patriarcal.
Leiam o texto e façam as vossas ilações…
rlp
Por Anna Kollontai
Quem são as mulheres
modernas? Como as criou a vida?
" A mulher moderna, a
mulher que denominamos celibatária, é filha do sistema económico do grande
capitalismo. A mulher celibatária, não como tipo acidental, mas uma realidade
cotidiana, uma realidade da massa, um fato que se repete de forma determinada,
nasceu com o ruído infernal das máquinas da usina e da sirene das fábricas. A
imensa transformação que sofreram as condições de produção no transcurso dos
últimos anos, inclusive depois da influência das constantes vitórias da
produção do grande capitalismo, obrigou também a mulher a adaptar-se às novas
condições criadas pela realidade que a envolve, o tipo
fundamental da mulher está em relação directa com o grau histórico do
desenvolvimento económico por que atravessa a humanidade. Ao mesmo tempo que se experimenta uma transformação das
condições económicas, simultaneamente à evolução das relações da produção,
experimenta-se a mudança no aspecto psicológico da mulher. A mulher
moderna, como tipo, não poderia aparecer a não ser com o aumento quantitativo
da força de trabalho feminino assalariado. Há cinquenta anos, considerava-se a
participação da mulher na vida económica como desvio do normal, como infracção
da ordem natural das coisas. As mentalidades mais avançadas, os próprios
socialistas buscavam os meios adequados para que a mulher voltasse ao lar. Hoje
em dia, somente os reaccionários, encerrados em preconceitos e na mais sombria
ignorância, são capazes de repetir essas opiniões abandonadas e ultrapassadas
há muito tempo.
Há cinquenta anos, as
nações civilizadas não contavam nas fileiras da população activa com mais do
que algumas dezenas, ou mesmo algumas centenas de milhares de mulheres. Actualmente
o crescimento da população trabalhadora feminina é superior ao crescimento da
população masculina. Os povos civilizados dispõem não de centenas de milhares,
mas sim de milhões de braços femininos. Milhões de mulheres pertencem às
fileiras proletárias; milhares de mulheres têm uma profissão, consagram suas
vidas à ciência ou à arte. Na Europa e nos Estados Unidos as estatísticas
acusam mais de sessenta milhões de mulheres inscritas na classe trabalhadora.
Marcha grandiosa a desse exército independente de mulheres! 50% desse exército é constituído por mulheres do
tipo celibatário, isto é, por mulheres que na luta pela subsistência contam
apenas com suas próprias forças; de mulheres que não podem, segundo a tradição,
viver unicamente dependendo de um marido que as mantenha.
As relações de
produção, que durante tantos séculos mantiveram a mulher trancada em casa e
submetida ao marido, que a sustentava, são as mesmas que, ao arrancar as
correntes enferrujadas que a aprisionavam, impelem a mulher frágil e inadaptada
à luta do cotidiano e a submetem à dependência económica do capital. A mulher
ameaçada de perder toda a assistência, diante do temor de padecer privações e
fome, vê-se obrigada a aprender a se manter sozinha, sem o apoio do pai ou do
marido. A mulher defronta-se com o problema de adaptar-se rapidamente às novas
condições de sua existência, e tem que rever imediatamente as verdades morais
que herdou de suas avós. Dá-se conta, com assombro, de toda inutilidade do
equipamento moral com que a educaram para percorrer o caminho da vida. As
virtudes femininas - passividade, submissão, doçura - que lhe foram inculcadas
durante séculos, tornam-se agora completamente supérfluas, inúteis e
prejudiciais. A dura realidade exige outras qualidades nas mulheres
trabalhadoras. Precisa agora de firmeza, decisão e energia, isto é, aquelas
virtudes que eram consideradas como propriedade exclusiva do homem. Privada da protecção
que até então lhe prestara a família ao passar do aconchego do lar para a
batalha da vida e da luta de classes, a mulher não tem outro remédio senão
armar-se, fortificar-se, rapidamente, com as forças psicológicas próprias do
homem, de seu companheiro, que sempre está em melhores condições para vencer a
luta pela vida. Nesta urgência em adaptar-se às novas condições de sua
existência, a mulher se apodera e assimila as verdades, propriamente
masculinas, frequentemente sem submetê-las a nenhuma crítica, e que, se
examinadas mais detalhadamente, são apenas verdades para a classe burguesa.(1)
A realidade
capitalista contemporânea parece esforçar-se em criar um tipo de mulher que,
pela formação de seu espírito, se encontra incomparavelmente mais próxima do
homem do que da mulher do passado. Este tipo de mulher é uma consequência
natural e inevitável da participação da mulher na corrente da vida económica e
social. O mundo capitalista só recebe as mulheres que souberam desprezar, a
tempo, as virtudes femininas e que assimilaram a filosofia da luta pela vida.
Para as inadaptadas, isto é, para aquelas mulheres pertencentes ao tipo antigo,
não há lugar nas fileiras das hostes trabalhadoras. Cria-se desta forma, uma
espécie de selecção natural entre as mulheres das diversas camadas sociais. As
fileiras das trabalhadoras são sempre formadas pelas mais fortes e resistentes,
pelas mulheres de espírito mais disciplinado. As de
natureza frágil e passiva continuam fortemente vinculadas ao lar. Se as
necessidades materiais as arrancam do lar para lançá-las na tormenta da vida,
estas mulheres deixam-se levar pelo caminho fácil da prostituição legal ou
ilegal, casam-se por conveniência ou lançam-se à rua. As mulheres
trabalhadoras constituem a vanguarda de todas as mulheres e integram em suas
fileiras representantes das diversas camadas sociais. Entretanto, a imensa
maioria dessa vanguarda feminina não se constitui de mulheres do tipo de Vera
Niokdinovna, orgulhosas da sua independência, mas, por milhões de Matildes
envoltas em xales cinzentos, Tatianas, de Riasan, com os pés descalços,
empurradas pela miséria a novos caminhos.(2) É um profundo erro pensar, no
entanto, que o novo tipo de mulher, a celibatária, é fruto de esforços heróicos
de algumas individualidades fortes que tomaram consciência de sua própria
personalidade. Nem a vontade própria, nem o exemplo audacioso de Magda, nem o
da decidida Renata foram capazes de criar o novo tipo de mulher. A
transformação da mentalidade da mulher, de sua estrutura interior, espiritual e
sentimental, realizou-se primeiro e, principalmente, nas camadas mais profundas
da sociedade, ou seja, onde se produz necessariamente a adaptação ao trabalho,
nas condições radicalmente transformadas de sua existência.
Estas mulheres, as
Matildes e as Tatianas, não resolvem nenhum problema. Além disso, ainda tentam
agarrar-se com todas as suas forças ao passado. Com muito pesar se vêem
obrigadas a curvar-se diante das leis da necessidade histórica - as forças de produção
- e a dar os primeiros passos pelo novo caminho. Caminham ao acaso, dominadas
pela tristeza, amaldiçoando seus passos e acariciando em seu interior o sonho
de um lar, onde possam desfrutar de tranquilas e modestas alegrias. Ah, se
fosse possível abandonar o caminho, voltar atrás. Mas, isto é irrealizável,
pois os grupos de companheiras são cada vez mais densos e a corrente as empurra
cada vez para mais longe do passado. É preciso adaptar-se à angustiante falta
de espaço, preparar-se para a luta, ocupar o lugar correspondente a cada uma;
têm que defender o direito de viver.
A mulher da classe
operária contempla como nasce e se fortalece dentro de si a consciência de sua
independente individualidade. Tem fé em suas próprias forças. Gradualmente, de
forma inevitável e poderosa, desenvolve-se o processo de acumulação de novos
caracteres morais e espirituais da mulher operária, caracteres que lhe são
indispensáveis como representantes de uma classe determinada. Há, porém, algo
ainda mais essencial; é que esse processo de transformação da estrutura
interior da mulher não se reduz unicamente a personalidades, mas corresponde a
grandes massas, a círculos muito grandes, cada vez maiores. A vontade
individual submerge e desaparece no esforço colectivo de milhões de mulheres da
classe operária, para adaptar-se às novas condições da vida. Também nesta
transformação desenvolve o capitalismo uma grande actividade. Ao arrancar do lar, do berço, milhares de mulheres, o
capitalismo converte essas mulheres submissas e passivas, escravas obedientes
dos maridos, num exército que luta pelos seus próprios direitos e pelos
direitos e interesses da comunidade humana. Desperta o espírito de protesto e
educa a vontade. Tudo isto contribui para que se desenvolva e fortaleça a individualidade
da mulher.
Mas, desgraçada da operária, que crê na força invencível de
uma individualidade isolada. A pesada carga do capitalismo a esmagará,
friamente, sem piedade. As fileiras de mulheres combatentes constituem a
única força capaz de desviar de seu caminho a pesada carga do capitalismo.
Deste modo, ao mesmo tempo que se desenvolve a consciência de sua personalidade
e de seus direitos, nasce e evolui na mulher operária do novo tipo o sentimento
da colectividade, o sentimento do companheirismo, que
só se encontra, e muito levemente, na mulher do novo tipo pertencente a outras
classes sociais. Este é o sentimento fundamental, a esfera de sensações e
pensamentos que separa com uma linha divisória definitiva as trabalhadoras das
mulheres burguesas, pertencentes ao mesmo tipo celibatário. Nas mulheres do novo tipo, mas pertencentes às distintas
classes, é comum a distinção qualitativa das mulheres do passado. Como
parte integrante das hostes de mulheres trabalhadoras, sua estrutura interior
experimentou igual transformação, ou seja, logrou desenvolver sua inteligência,
reforçar sua personalidade e ampliar seu mundo espiritual. A esfera, porém, de
pensamentos e sentimentos, que derivam do conceito de classe, são os que
separam, fundamentalmente, as mulheres do novo tipo pertencentes às diversas
camadas sociais. As operárias sentem o antagonismo de classe com uma
intensidade infinitamente maior que as mulheres do tipo antigo, que não tinham
consciência da luta social. Para a operária, que deixou sua casa, que
experimentou sobre si mesma toda a força das contradições sociais e que se viu
obrigada a participar activamente na luta de classes, uma ideologia de classe,
clara e definida, adquire a importância de uma arma na luta pela existência. A
realidade capitalista separa de maneira absoluta a Tatiana, de Gorki, da
Tatiana de Nagrodskaia. É esta realidade capitalista
que leva a proprietária de uma oficina a encontrar-se, por sua ideologia, muito
mais separada de uma de suas operárias do que a boa dona de casa com relação a
sua vizinha, a mulher de um operário. Esta realidade capitalista torna
aguda a sensação do antagonismo social entre as mulheres trabalhadoras. Para
esta categoria de mulheres do novo tipo só pode haver um ponto comum: sua
distinção qualitativa da mulher do passado, as propriedades específicas que
caracterizam a mulher independente, do tipo que temos denominado celibatário. As mulheres do novo tipo, pertencentes a estas duas classes
sociais, passam por um período de antagonismo: as duas classes lutam pela
afirmação de sua personalidade; as de uma classe, conscientemente, por
princípio, as da outra classe, de forma elementar, coletiva, sob o jugo do
inevitável.
Mesmo, porém, que na
nova mulher pertencente à classe operária a luta pela afirmação de seu direito
e de sua personalidade coincida com os interesses de sua classe, as mulheres do
novo tipo pertencentes a outras classes sociais têm necessariamente que se
defrontar com um obstáculo: a ideologia de sua classe, que é hostil à
reeducação do tipo de mulher. No meio burguês, a insurreição da mulher adquire
um carácter muito mais agudo e os dramas morais da mulher do novo tipo são
muito mais vivos, têm mais colorido, oferecem maiores complicações.(3) No meio
operário, não há nem podem existir conflitos agudos entre a psicologia da
mulher do novo tipo, em formação, e a ideologia de sua classe. Tanto sua
psicologia em formação como sua ideologia de classe encontram-se em um processo
de formação, em fase de desenvolvimento.
O novo tipo da mulher, que é interiormente
livre e independente, corresponde, plenamente, à moral que elabora o meio
operário no interesse de sua própria classe. A classe operária
necessita, para a realização de sua missão social, de
mulheres que não sejam escravas. Não quer mulheres sem personalidade, no
matrimónio e no seio da família, nem mulheres que possuam as virtudes femininas
- passividade e submissão. Necessita de companheiras com uma individualidade
capaz de protestar contra toda servidão, que possam ser consideradas como um
membro activo, em pleno exercício de seus direitos, e, consequentemente, que
sirvam à colectividade e à sua classe.
A psicologia da mulher do novo tipo, da mulher
independente e celibatária, reflecte sobre a das demais mulheres que permanecem
ainda na retaguarda em relação a seu tempo. Os traços característicos,
formados na luta pela vida, das trabalhadoras convertem-se pouco a pouco,
gradativamente, nas características das outras mulheres que ficaram atrasadas.
Pouco importa que as mulheres trabalhadoras sejam apenas minoria, que para cada
mulher do novo tipo haja duas, talvez três mulheres pertencentes ao tipo
antigo. As mulheres trabalhadoras são as que dão tom à vida e determinam a
figura de mulher que caracteriza uma época determinada.
As mulheres do novo tipo, ao criar os valores
morais e sexuais, destroem os velhos princípios na alma das mulheres que ainda
não se aventuraram a empreender a marcha pelo novo caminho. São estas mulheres
do novo tipo que rompem com os dogmas que as escravizavam.
A influência das
mulheres trabalhadoras estende-se muito além dos limites de sua própria
existência. As mulheres trabalhadoras contaminam com
sua crítica a inteligência de suas contemporâneas, destroem os velhos ídolos e
hasteiam o estandarte da insurreição para protestar contra as verdades que as
submeteram durante gerações. As mulheres do novo tipo, celibatário e
independente, ao se libertarem, libertam o espírito agrilhoado, durante
séculos, de outras mulheres ainda submissas.
É certo que a mulher
do novo tipo já penetrou na literatura. Mas está ainda muito longe de haver
expulsado as heroínas de estrutura moral pertencentes aos tempos passados.
Tampouco conseguiu a mulher-individualidade descartar-se do tipo de mulher
esposa, eco do homem. Entretanto, é fácil observar que ainda nas heroínas do
tipo antigo se encontram, cada vez com maior frequência, as propriedades e os
traços psicológicos que possibilitaram a vida das mulheres do tipo celibatário
e independente. Os escritores dotam involuntariamente suas heroínas com
sentimentos e características que não eram, de modo algum, próprios das
heroínas da literatura do período precedente.(4)
A literatura contemporânea é rica, sobretudo,
em figuras de mulheres do tipo transitório. É rica em heroínas que têm
simultaneamente as características da mulher antiga e da mulher nova. Por
outro lado, ainda nas mulheres do tipo celibatário já formado, observa-se um
processo de transformação dos novos valores, que podem ser abafados pela
tradição e por uma série de pensamentos superados. A força dos séculos é
demasiado grande e pesa muito sobre a alma da mulher do novo tipo. Os
sentimentos atávicos perturbam e debilitam as novas sensações. As velhas
concepções da vida prendem ainda o espírito da mulher que busca sua libertação.
O antigo e o novo se encontram em continua hostilidade
na alma da mulher. Logo, as heroínas contemporâneas têm que lutar contra um
inimigo que apresenta duas frentes: o mundo exterior e suas próprias
tendências, herdadas de suas mães e avós.
Como disse Hedwig
Dohn, “os novos pensamentos já nasceram em nós, mas os antigos ainda não
morreram. Os restos das gerações passadas não perderam sua força, ainda que
possuamos a formação intelectual, a força de vontade da mulher do novo tipo.” A
reeducação da psicologia da mulher, necessária às novas condições de sua vida económica
e social, não pode ser realizada sem luta. Cada passo dado nesse sentido
provoca conflitos, que eram completamente desconhecidos das heroínas antigas.
São esses conflitos que inundam a alma da mulher, os que pouco a pouco chamam a
atenção dos escritores e acabam por converter-se em manancial de inspiração
artística. A mulher transforma-se gradativamente. E de objecto
da tragédia masculina converte-se em sujeito de sua própria tragédia.
Texto de Anna Kollontai - escritora e comunista russa - nasceu em 19 de Março de 1872 e morreu em 9 de março de 1952
2 comentários:
O nome da escritora é Alexandra Mikhailovna Kollontai*
Obrigada pela clarificação do nome.
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