O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quarta-feira, agosto 11, 2021

Descendo a rua, já não há humanidade.



DISTOPIA


Descendo a rua, já não se reconhece a humanidade. Todos os marcos, tudo aquilo que é importante, que é belo, marcante, se foi. As pessoas adoeceram. Estão doentes de corpo e de alma. Uma doença degenerativa que jamais atinge a morte, mas destrói, destrói, destrói.
Descendo a rua, os cenários consomem a si mesmos, corroem-se e devolvem ao mundo nada mais que um refluxo de tédio. Todas as lojas fecharam. Já não há marquises, já não há bares, restaurantes, cinemas, padarias ou risadas. Todo barulho se calou. Todo olhar se apagou. Tudo ruiu. Em seu lugar, somente o pó... e as farmácias, e as clínicas, e as farmácias. Pessoas doentes. Aqueles que são doentes de corpo e de alma. Seus corpos são uma bactéria, suas almas são um vírus.
Descendo a rua, só as farmácias e as clínicas e os cubículos que vendem capinhas de celular e as lojinhas de 1,99. Tudo se desfez sob os pés das pessoas doentes. E a miséria faz parte da doença. As farmácias fazem parte da doença, os cubículos que vendem capinhas de celular e as lojinhas de 1,99 fazem parte da doença. Todo o resto virou poeira. Não há espaço para a vida. Felicidade é crime inafiançável.
Descendo a rua, lembranças apodrecem até virarem fantasmas feitos de bile. Não vivem, envolvem as pessoas doentes em seu abraço de mortalha.
Descendo a rua, vê-se a peste. Ela está no negacionismo, mas também está naqueles que jamais conseguirão sair dela, mesmo quando ela deixar de existir. Assim como aqueles que jamais conseguem sair da guerra, mesmo quando a guerra já acabou. Ambos os lados da mesma moeda. Todos são pessoas doentes. Constatar isso seria triste pra burro, só que já não existe tristeza. Só existe o vazio. Dessa mesma forma, não existem as lojas e os prédios, só as farmácias, as clínicas, as capinhas de celular, as lojinhas de 1,99, as farmácias.
Descendo a rua, abrem-se os portões do trem fantasma. E a doença faz morada nas esquinas e nos corações carcomidos das pessoas doentes. A força da doença está em seu canto de sereia. Descer aquela rua é tão fodido que vai chegar o momento em que você quase desejará estar doente. E quando cair em si, estará mesmo doente. E vai abraçar aquela mortalha com uma versão degenerada de um sentimento que poderia ser amor.
Descendo a rua, já não há humanidade. Se você dá de ombros à doença, você está doente. Se você luta contra a doença, é uma merda dizer isso, mas você também está doente. Porque para lutar contra a doença, é preciso olhar pra ela, e olhar por um tempão. Acaba se apaixonando. É como disse aquele cara, se você passa a vida a combater os monstros, torna-se um monstro, se você olha muito tempo pra dentro do abismo, o abismo olha pra dentro de você. Estão todos doentes. E não restou nada. E o que seria triste, se ainda existisse tristeza, é saber que abortaríamos qualquer possibilidade de renascimento do que quer que fosse, pois já estamos apegados ao nada, apegados à doença.. Já estamos todos doentes. Tudo o que não é inexistência, já não nos diz respeito. E a mortalha nos envolve. Uma mortalha muito pior que qualquer morte.
Descendo a rua, já não há mais rua.
Descendo a rua, já não há você.
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Daniel Frazão


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