O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, setembro 15, 2017

O HOMEM "CRIA" A MULHER...



UM OLHAR SOBRE A DOMINAÇÃO DO MASCULINO

"...pertencer a um tempo e a uma cultura significa possuir uma herança, constituída por um conjunto de recursos de interpretação, com a qual nos orientamos como humanos. Contudo, tal interpretação deve configurar‑se como um comportamento reflexivo perante a herança cultural e não representar uma aceitação passiva dela. Ou seja, “ter sentido histórico” obriga a reconhecer o legado cultural que recebemos, mas, obriga, igualmente, a re‑avaliá‑lo e a re‑interpretá‑lo, de tal forma que possamos re‑configurar, com maior equidade, a herança cultural que vamos deixar.

No caso das representações do feminino, o trabalho de interpretação do legado cultural é particularmente delicado porque tem de ser feito ao arrepio daquilo que mais profundamente nos constitui, tendo de começar por uma desconstrução e por uma hermenêutica da suspeita, uma vez que as representações do feminino mais enraizadas advêm de uma concepção antropológica assimétrica, que toma o masculino como padrão e o feminino como derivado.

Nesse contexto desconstrutor e de suspeição, um olhar reflexivo sobre a tradição ocidental deve deixar‑se orientar pela ideia de que a dominação masculina não foi universal e pacificamente aceite, mas apenas assumiu o aspecto de parecer ter sido absolutamente aceite. Ou seja, re‑significar a nossa História comum, de homens e de mulheres, obriga a procurar os ruídos à aceitação universal da dominação masculina que ocorreram e trazer à luz os sinais da ambiguidade e da complexidade nas relações de poder entre os sexos, que todas as épocas testemunham. Sem a desocultação desses acontecimentos não será possível fazer um novo caminho de entendimento do nosso modo de ser e de estar e, nós, mulheres, estaremos desmunidas de figuras femininas que materializem a possibilidade de nos olharmos como seres humanos integrais. Além disso, se aceitarmos passivamente a ideia de que a dominação masculina foi sempre completamente aceite, estamos a fazer uma nova discriminação em relação à nossa herança cultural, porque não fazemos justiça a quem se insurgiu contra a dominação do masculino, e estamos, por nossa vez, a invisibilizar o seu esforço, reiterando o legado cultural que o conseguiu escamotear.
Tal interpretação reflexiva da tradição ocidental vai mostrar‑nos um modo de pensar as mulheres e o feminino, a que se poderá chamar pensar canónico − que dá das mulheres e do feminino uma visão negativa e subalterna −, mas também uma contracorrente de pensamento ou ruídos marginais ao pensar dominante que evidenciam o facto de a aceitação da dominância do masculino nem sempre ter sido pacífica."


FERNANDA HENRIQUES
(Docente na Universidade de Évora)

2 comentários:

raquel loh disse...

já a algum tempo tentando me entender como mulher, encontrar esse blogger tem me ajudado muito a enriquecer minha percepção sobre a feminilidade

rosaleonor disse...

Espere que continue a ser esclarecida - tem aqui muita informação importante...Desejo-lhe força e coragem para prosseguir a sua busca!
Um abraço
rlp