O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, outubro 22, 2023

O Poder começa com a repressão do desejo




COMPREENDER O PARADIGMA PATRIARCAL E A DOMINAÇÃO DA MÃE E MULHER - leiam e releiam, é fundamental para perceber todo o jogo familiar e social em que vivemos. rlp


"O Poder começa com a repressão do desejo, da produção vital per se, e produz uma determinada desvitalização ou castração dos seres humanos. Para empregar o Poder é preciso situar-se socialmente numa escala superior em relação as eventuais vítimas. Disso provem o conceito de prepotência.
A hierarquização social, que Aristóteles já tinha deixado definida, determina que há seres superiores a outros que por si mesmos se definem como os seus inferiores. E essa hierarquização é inerente à dominação, porque para dominar é preciso ser superior, e para não exercer a resistência natural à dominação e submeter-se, é preciso sentir-se inferior e reconhecer como superior quem comanda. Então é fundamental que os seres humanos confundam a dominação e o submissão com outros aspetos das relações da vida quotidiana, e para isso é fundamental que a dominação e o submissão não apareçam nitidamente desenhadas, para que as aceitemos com ‘naturalidade’, para que as consideremos naturais. A ordem falocrática que se vive desde que se nasce, estabelece a hierarquização que deve existir nas relações íntimas das pessoas (entre os dois sexos, entre adult@s e crianças). Uma vez assumida essa hierarquização, é fácil ir extrapolando a mesma ao habitual do resto dos âmbitos sociais. Meu chefe é superior a mim porque o meu pai também o é. No seu estudo sobre a personalidade autoritária Adorno explica a correlação entre o grau de autoritarismo paterno e a ideologia fascista, entre a aceitação da ditadura em casa e no restante da sociedade.
O ego masculino define-se (representa-se e vive-se) como hierarquicamente superior ao feminino; é prepotente em relação às mulheres e às criaturas. O ego feminino é hierarquicamente inferior ao masculino e superior às crianças, e somos prepotentes com às nossas crianças. O machismo é a atitude da prepotência masculina.
O feminismo questionou a prepotência masculina assim como os variados tipos de sujeição normalizada do sexo feminino ao masculino. Porém há um desfasamento entre a evolução do ego feminino e do masculino que trazem em si as marcas dessas relações de dominação. Porque o paradigma da prepotência masculina segue operativo no plano simbólico, e segue exigindo a submissão do sexo feminino, a submissão da “alma gémea”.
Então, quando nós mulheres não damos satisfação à necessidade do ego masculino de ser reconhecido como superior, e não lhes oferecemos a devida vénia ou submissão, o ego masculino sente-se ameaçado e portanto aparece a violência machista para se defender. Porque o ego ao estar identificado com a própria vida, o pô-lo em questão apresenta-se-lhe como uma questão de vida ou morte; e quando o ego colapsa (se desmorona), o mecanismo construido para a sobrevivência anímica do homem colapsa também, e é por isso que na sua queda emerge a angustia existencial da etapa primária (original), que não é uma angustia qualquer, senão aquela que se produz no limite da vida frente à morte. E ainda que não tenha consciência disso, os inconscientes sim sabem que a insubmissão da mulher lhes desmantela o ego.
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Porque de facto desde que a criança na mais tenra infância começou a ter, como se costuma dizer, a sua personalidade, ela tem o ego moldado para ter uma mulher que lhe seja submissa, para que ela se possa desenvolver com a ideia da submissão da mulher (a começar na mãe*), da mesma forma que um automóvel está desenhado para funcionar com gasolina. Além disso uma vez que temos a vida e o ego confundidos, a queda do ego é considerada e temida como uma morte. E por isso, com demasiada frequência a violência machista é sentida em termos de vida ou morte.
Também a angústia da mulher alcança limites letais, quando o marido a abandona. Assim como relata Simone de Beauvoir em A Mulher Rota. Porque esse abandono também questiona o ego feminino cujo desenvolvimento requer a presença do ego masculino: as costas largas masculinas para proteger-las são - e aqui a transferência é clara- o seu novo e imprescindível útero materno. Ao não podermos ir desde o conforto da mãe para um outro circulo onde possamos viver com confiança, fluir e entregarmo-nos, ao nos faltar esse envolvimento original nos voltamos para um suposto “útero materno” que é a proteção individual masculina. Por isso o abandono do par masculino faz desmoronar o ego feminino, e deixa à vista a Falta Básica (da mãe) de modo que regressemos à angustia do abandono materno. Não podemos esquecer que os egos estão formados como ‘uma tampa’ dessa Falta Básica da mãe, que o matricídio vivido em nossa carne nos fez sentir, e serve como tampa para a ligação original do amor que dá prazer e cuja repressão produziu a ferida psíquica e a ansiedade cronica na mulher; e assim cada ego específico é uma tampa adequada para cada Falta Básica específica; e os abandonos da ‘alma gémea’ deixam-nos frente a frente com a nossa mais íntima verdade: o abandono materno e a perda do estado simbiótico primário, que é a nossa ferida primária.
O colapso dos egos masculinos e femininos expõe e manifesta a carência básica que subjaz: um questionamento da existência, com um sentimento de angustia ante a morte. Com o exercício das relações de dominação, os egos conjuram e tapam os medos inconscientes, a ansiedade que brota da ferida; jogam com os medos e ao mesmo tempo com as ânsias de viver e de amar das pessoas. E quando isso não é suficiente, temos Deus, (ou a deusa*) que tem essa função de acalmar essa Falta Básica da Mãe, pouco importa que seja do sexo masculino ou do sexo feminino. (Como Sartre dizia, Deus é a solidão dos homens).
Não temeriamos o colapso dos egos se soubéssemos que somos ou que podíamos ser outra coisa; que tudo o que acontece connosco é que não tivemos mãe nem o envolvimento humano adequado; ao sentirmos o ser humano que somos, ao sabermos o que é a expansão da capacidade de amar, a pessoa com desejo, a sua capacidade de regozijo: infinitamente melhor que a personalidade ou que o personagem que o ego arrasta. Não temeríamos a solidão se soubéssemos que um filamento de amor verdadeiro basta para retroalimentar o nosso sistema corporal, enquanto que o sucedâneo do amor corrupto de dominação somente nos faz distrair e dar um pouco de prazer para atenuar a angustia existencial básica.
Nas relações íntimas com as pessoas, o Poder é um poder fático (a autoridade jurídica) de repressão pontual e concreta, que além disso se instala como um parasita no desejo de amor de todas as criaturas. E essa parasitação não é outra coisa senão a chantagem emocional continuada e sistemática exercida sobre os individuos, que se põe em marcha de modo subtil, e hoje em dia (geralmente) de forma inconsciente, por parte do pai e da mãe, (através da “educação*). Isso é o conteúdo da Repressão do Desejo Materno e a Génese do Estado de Submissão Inconsciente.” (Que todos os seres humanos hoje vivem dentro deste paradigma*. Rlp)

CACILDA RODRiGAÑES Bustus
P.194 LIVRO 2 A REBELIÃO DE EDIPO
Tradução do espanhol por Sabine Carlotti e correcção minha rlp.

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