O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, novembro 16, 2018

A MULHER NUA



"A mulher nua olha para o horizonte. O horizonte é uma cortina de palmeiras. Vê uma mancha. É um enxame. De abelhas? Não, deve ser de vespas. Ou de galinhas tolinhas acossadas pela queda de um bago de milho do tecto do celeiro. Mas a mancha vai ganhando altura, forma e movimento dos fantasmas. Uma mancha que levanta uma nuvem de pó, como uma manada furiosa, pisando solo seco. Da mancha falante ela ouve sons demolidores como dragões subterrâneos a comandar temores de terra. Sons que lhe diziam coisas. Coisas que ela entendia. Outras que não entendia. Sente cheiro de leite. Ouve o choro de uma criança - ah, afinal é um bando de mulheres zangadas. Não compreendia porque estavam ali. Não compreendia aquela procissão, nem aquela zanga. O que queriam elas? Matá-la?
O grupo de mulheres furiosas precipita-se sobre ela como aves de rapina ávidas de sangue. Um grupo numeroso. Era o instinto de defesa comandando a marcha. Inquietação. Dentro das mentes assustadas, os mitos surgem como a única verdade, para explicar o inexplicável. Imaginavam as plantas a secar e a chuva a cair e a arrasar todas as sementeiras. O gado a minguar. Os galos a esterilizar, as galinhas a não chocar nem ovos nem pintos.
Aquela presença era o prenúncio do desaparecimento da espécie dos galináceos. Nas curvas da mulher nua, mensagens de desespero.
- Hei, o que fazes ai?
A multidão vê a mulher nua sentada num trono de barro, beira do rio. Na posição de lótus, colocando a sua intimidade na frescura do rio. Vê-lhe o interior desabrochado, como um antúrio vermelho com rebordos de barro. Vê-lhe as tatuagens no seu ventre de mulher madura. Vê-lhe o corpo esguio, pequeno, recheado á frente, recheado atrás, esculpido por inspiração divina. Vê-lhe a pele macia, de café torrado. Os lábios gordos como um tutano, cheios de sangue, cheios de carne. Olhos de gata. Vê-lhe o cabelo e sobrancelhas macias e fartas como novelos de seda, com gotas de água escorrendo sobre as costas, como contas de lagrimas, na grinalda de uma noiva.
- Escandalosa, sai já dai.
Os pés da mulher nua contaram já muitas pedras no caminho. Palmilharam vários destinos á busca de um tesouro. Como uma condenada a caminhar a vida inteira. Atiraram-lhe pedras por todos os lados onde passou. Expulsaram-na com paus e pedras, como um animal estranho que invadia propriedades alheias. As vozes queriam que ela desaparecesse. Mas desaparecer para onde se ela não tinha para onde ir? Compara as pessoas aos chacais, aos abutres. Não vê diferença. Há uma pessoa no abismo pedindo ajuda. A sociedade humana apressa-se a atirar paus e pedras, a pisar a mão com que te expressas por teu ultimo desejo.
A mulher nua levantou a cabeça. Balançava os olhos entre o céu e o horizonte na visão clarividente dos poetas.
- Hei, que fazes ai? – grita uma das mulheres.
- Quem és tu?
Ela olha para a multidão, com os olhos no limbo. Deve estar a ouvir a música do amor. Deve estar a viver paixões secretas que lhe vêm do outro lado do mundo. Talvez veja imagens em movimento. Ou sombras falantes. Dentro dela deve haver sentimentos, pensamentos, vozes, sonhos, histórias, canções de embalar. Que se apresentam numa amálgama, causando-lhe confusão na mente.
- De onde viste?
Ela é solitária. Exila. Estrangeira. Surgiu do nada na solidão das águas do rio. Vindo de lugar nenhum. Os seus pés parecem ter percorrido todo o universo pólo a pólo. Parece que nasceu ali, gémea das águas, das ervas, do milho e das arvores dos mangais. A vegetação pariu um ser.
Raiva e espanto no mesmo sentimento. Bem-aventurados os olhos cegos, que jamais verão a cor do terror inspirado por esta mulher nua. Algumas mulheres protegem os olhos da imoralidade. Da infâmia. Olham para o chão. As profanas rogam pragas em grossos palavrões. As puritanas benzem-se e colocam a palma da mão sobre o rosto como um leque. Fazem de conta que não vêm o que conseguem ver pelos interstícios dos dedos.
- De onde vieste tu?
As mulheres preparam o sermão do momento, feito de moral e ameaças. Ela escuta. Supera as ameaças com um sorriso.
- Quem és tu? – Insistiam as mulheres furiosas.
As pessoas gostam muito de identidades. Chegam a exigir uma certidão de nascimento para uma pessoa presente. Haverá melhor testemunho do que a presença para confirmar que nasci?
- Porque estás nua?
A mulher nua está demasiado cansada para responder. Demasiado surda para ouvir. Desespera-se. Quantas forças uma mulher deve ter para carregar a tortura, a ansiedade e a esperança. Quantas palavras terá a oração da eterna clemência a um deus desconhecido, cuja resposta não virá jamais?
- Usa a tua roupa, desconhecida.
A roupa dela está ali, molhada. Cobrindo os arbustos verdes como um guarda-sol.
- Vá, veste-te já, mulher!
- Mulher, não tens vergonha na cara? Onde vendeste a tua vergonha? Não tens pena das nossas crianças que vão cegar com a tua nudez? Não tens medo dos homens? Não sabes que te podem usar e abusar? Oh, mulher veste lá a tua roupa que a tua nudez mata e cega!
Ela responde com a linguagem dos peixes do rio. Sorri. Olha para o chão. Para o céu. Com brandura. Com candura. Os olhos emanam muita luz e uma miríade de cores. Ela é simpática. Ela é agradável. Tem dentes muito brancos. Completos. Ela é bonita. Tem sorriso de anjo. O que é que ela vê, para além do horizonte?
- Esconde a tua vergonha, mulher.
A imagem de Maria distorce o sentido mágico da nudez das sereias. Parece trazer o presságio da tempestade á flor da pele. Os corações se dilatam de piedade. De medo. Há mensagens escondidas nas linhas nuas do corpo. Nos grãs de areia. Na Via Láctea. Nas barbas do sol. Nas pálpebras da lua. Nas pegadas de um pescador qualquer á beira do rio. Nas rajadas do vento. Esta mulher não veio ao acaso. Mensageira do destino mau.
… Ameaçaram-na. Talvez ela assim tivesse medo e se vestisse. Mas ela acomodava-se ainda mais no seu espaço., sereia rainha em trono de barro. Ela vê os olhos da multidão. Mais escuros do que a noite…Sombras em movimento.
…Mas o exército de mulheres estava de mãos nuas. Confiavam na arma da língua. Da persuasão.
…As vozes da multidão ululam furiosas como uma onda. Era a superstição e o medo aliando-se como fios da mesma corda. Punhados de areia caem no corpo da mulher nua como chuva de granizo. O seu peito incha com a força do medo. Expira ar quente que o vento colhe para o infinito. E dá um mergulho no rio e navega na impulsão das águas, como uma ninfa rolando nas ondas…Já longe, a mulher nua sibila um riso venenoso, que cai como uma espada sobre as lanças do inimigo. E celebra o seu triunfo sobre a multidão.
Ali estava a heroína do dia. Protegida na fortaleza do rio. Num trono de água. Que venceu um exército de mulheres e colocou desordem na moral pública. Que desafiou os hábitos da terra e conspurcou o santuário dos homens.”

“O Alegre Canto da Perdiz” de Paulina Chiziane

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