O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

terça-feira, fevereiro 28, 2012

A MULHER LIGA-SE A FONTE...


— O útero — repetiu Esperanza — é o órgão feminino fundamental, o que dá às mulheres esse poder, essa força extra para canalizar sua energia.



— É hora de saber o que a faz ver a melhor versão do seu trabalho original. — Esperanza me piscou o olho como para enfatizar que estava para me revelar um segredo retumbante.

— Quando ensonhamos despertas, nós temos acesso ao conhecimento directo.

Observou-me um longo período, e havia desagrado nos seus olhos.

— Não seja tão densa! — Nélida me cutucou impaciente. — Ensonhar desperta deveria ter-lhe demonstrado que possui, como todas as mulheres, uma capacidade sem igual para receber conhecimentos directos.
Com um gesto Esperanza me indicou para ficar em silêncio e disse: — Sabia que uma das diferenças básicas entre homens e mulheres é a maneira como encaram o conhecimento?
Eu não tinha ideia do que isso queria dizer. De maneira lenta e deliberada arrancou uma folha em branco do meu caderno e desenhou duas figuras humanas, uma das quais coroou com um cone e disse que era um homem. Sobre a outra cabeça desenhou o mesmo cone, só que invertido, e o declarou ser a mulher.

— Os homens constroem o seu conhecimento passo a passo — explicou com o lápis apontando à cabeça coroada pelo cone. — Tendem para cima, trepam em direcção ao conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram como um cone na direcção do espírito, para o conhecimento, e este procedimento limita até onde podem chegar — repassou com o lápis as linhas do cone da primeira figura. — Como poderá ver, os homens só podem alcançar uma certa altura, e o seu caminho termina no ápice do cone.

— Preste atenção — advertiu, apontando com o lápis à segunda figura. — Como poderá ver o cone está invertido, aberto como um funil. As mulheres possuem a faculdade de abrir-se directamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte lhes chega de maneira directa, na base larga do cone. Os feiticeiros dizem que a conexão das mulheres com o conhecimento é expansiva, enquanto que a dos homens é bastante restritiva. “Os homens se conectam com o concreto — prosseguiu —, e apontam ao abstracto. As mulheres se conectam com o abstracto, e contudo tratam de entregar-se ao concreto”.

— Por quê? — perguntei —, sendo as mulheres tão abertas ao conhecimento ou ao abstracto, são consideradas como inferiores?
Esperanza me contemplou  espantada. Ficou de pé, esticou-se como um gato, fazendo estalar todas suas articulações, e recuperou seu assento.

Que sejam consideradas inferiores ou, no melhor dos casos, que suas características femininas sejam consideradas complementares às dos homens, tem a ver com a maneira como uns e outros se aproximam do conhecimento. Em geral à mulher interessa-lhe mais dominar-se a si mesma que a outros, um tipo de domínio claramente ambicionado pelo homem.

— Inclusive entre os feiticeiros — acrescentou Nélida para satisfação das mulheres.

Esperanza expressou sua crença de que originalmente as mulheres não consideravam necessário explorar essa facilidade para unir-se directa e amplamente ao espírito. Não achavam necessário falar ou intelectualizar acerca desta sua capacidade, pois lhes bastava accioná-la para saber que a possuíam.

— A incapacidade do homem para unir-se directamente ao espírito é o que os impulsionou a falar do processo de alcançar o conhecimento — explicou. — Não pararam mais de falar disso, e é precisamente essa insistência em saber como se esforçam por alcançar o espírito, esta insistência em analisar o processo, o que lhes deu a certeza de que o ser racional é uma conquista tipicamente masculina.
Esperanza explicou que a conceptualização da razão tem sido obtida exclusivamente pelos homens, e isto lhes têm permitido minimizar os dons e as conquistas da mulher e, pior ainda, excluir as características femininas da formulação dos ideais da razão.

— É claro que na actualidade a mulher acredita no que lhe tem sido atribuído — enfatizou. — A mulher tem sido criada para crer que só o homem pode ser racional e coerente, e agora o homem é portador de um capital que o torna automaticamente superior, seja qual for sua preparação ou capacidade.

— Como foi que as mulheres perderam sua conexão directa com o conhecimento? — perguntei.

— Não a perderam — corrigiu Esperanza. — Ainda têm uma conexão directa com o espírito, só que se esqueceram como usá-la, ou melhor, copiaram a condição masculina de não possuí-la. Durante milhares de anos o homem tem se ocupado de fazer com que a mulher se esqueça do seu dom. Olhe para  a Santa Inquisição, por exemplo: esse foi um expurgo sistemático para erradicar a crença de que a mulher tem uma conexão directa com o espírito. Toda a religião organizada não é outra coisa senão  uma manobra muito  bem sucedida para colocar à mulher no nível mais baixo. As religiões invocam uma lei divina que mantém que as mulheres são inferiores.
Olhei-a assombrada, perguntando-me como podia ser tão erudita.

— Os homens necessitam dominar a outros, e a falta de interesse das mulheres por expressar ou formular o que conhecem, e como o conhecem, tem constituído uma nefasta aliança — continuou Esperanza. — Tem tornado possível que a mulher seja forçada, desde o seu nascimento, a aceitar que a plenitude se encontra no lar, no amor, no casamento, em parir filhos e em negar-se a si mesma. A mulher tem sido excluída das formas dominantes de pensamento abstracto e educada para a dependência do homem.

As mulheres têm sido tão bem treinadas para aceitar que os homens devem pensar por elas que acabaram por deixar de pensar.

— A mulher é perfeitamente capaz de pensar — disse eu. Esperanza me corrigiu.

— A mulher é capaz de formular o que aprendeu, e o que tem aprendido tem sido definido pelo homem. O homem define a natureza intrínseca do conhecimento, e dele tem excluído tudo aquilo que pertence ao feminino ou, se o tem incluído, é sempre de maneira negativa. E a mulher tem aceitado isso.

— Está atrasada em anos — objectei. — Hoje em dia a mulher pode fazer o que deseja. Em geral têm acesso a todo centro de aprendizagem, e a quase todos os trabalhos que desempenha o homem.

— Mas isso não tem sentido, a menos que possuam um sistema de apoio, uma base — argumentou Esperanza. — De que serve ter acesso ao que possuem os homens, quando ainda as consideram seres inferiores, obrigadas a adoptar atitudes e comportamentos masculinos para conseguir ter êxito? As que na verdade conseguem alcançar o êxito são as perfeitas convertidas, e elas também depreciam às mulheres.

— De acordo com os homens o útero limita à mulher tanto mental como fisicamente. Esta é a razão pela qual às mulheres, apesar de seu acesso ao conhecimento, não lhes tem sido permitido determinar o que é este conhecimento. Tenha em conta, por exemplo, os filósofos — propôs Esperanza. — Os pensadores puros. Alguns deles são encarniçadamente contra a mulher. Outros são mais subtis, no sentido em que estão dispostos a admitir que a mulher poderia ser tão capaz como o homem, se não fosse a ela não lhe interessar as investigações do domínio racional, e no caso de estar interessada, não deveria estar. Pois, dizem, fica melhor à mulher ser “fiel” à sua natureza, como companheira nutridora e dependente do macho.
Esperanza expressou tudo isto com uma inquestionável autoridade. No entanto, em poucos minutos, a mim já me assaltavam as dúvidas. — Se o conhecimento não é outra coisa senão do domínio do masculino, a que se deve então a sua insistência em que eu vá à universidade? — perguntei.

— Porque você é uma bruxa, e como tal precisa saber o que te afecta, e como te afecta — respondeu. — Antes de recusar algo deve saber por que o recusa.

“Sabe, o problema é que o conhecimento nos nossos dias deriva simplesmente de pensar nas coisas, mas as mulheres têm um caminho distinto, nunca antes levado em consideração. Esse caminho pode contribuir para o conhecimento, mas terá de ser uma contribuição que nada tem a ver com pensar nas coisas”.

— Com o que teria que ver então?

— Isso é para ser você a decidir, depois de ter dominado as ferramentas do raciocínio e da compreensão. Só depois…

Minha confusão era muito grande.

— O que propõem os feiticeiros — continuou Esperanza — é que os homens não podem possuir o direito exclusivo ao raciocínio. Parecem possuí-lo agora porque o terreno sobre o qual o aplicam é um terreno onde prevalece apenas o masculino.

Apliquemos então a razão a um terreno onde prevalece o feminino, e esse é, naturalmente, o cone invertido que te descrevi: a conexão feminina com o próprio espírito. Desviou a cabeça, como decidindo o que estava por dizer.

— Essa conexão deve enfrentar-se com um outro tipo de raciocínio, algo nunca antes empregado: o lado feminino do raciocínio. (o lado feminino do cérebro*)

— E qual é o lado feminino do raciocínio, Esperanza?

— Muitas coisas; uma delas é definitivamente ensonhar. — olhou-me interrogativamente, mas eu nada tinha a dizer.

Sua profunda gargalhada me pegou de surpresa.

Eu sei o que espera você dos feiticeiros: rituais e encantamentos, cultos raros, misteriosos. Quer que cantemos. Quer fundir-se com a natureza; estar em comunhão com os espíritos da água; quer paganismo, uma visão romântica do que fazemos.

Muito germânico. “Para submergir-se no desconhecido precisam de coragem e mente. Somente com isso poderá explicar a você mesma e a outros os tesouros que poderá encontrar.” — Esperanza chegou perto de mim, ansiosa ao que parecia, por confiar-me algo. Coçou a cabeça e bufou repetidas vezes, cinco vezes como o fazia o cuidador. —Precisa agir a partir de seu lado mágico — disse.

— E isso o que é?

— O útero — e o disse com tanta calma, e em tom tão baixo, como se não lhe interessasse minha reacção, que quase não a ouvi. Depois, ao dar-me conta do absurdo de suas palavras, me endireitei e olhei para as outras mulheres.

— O útero — repetiu Esperanza — é o órgão feminino fundamental, o que dá às mulheres esse poder, essa força extra para canalizar sua energia.

Explicou que o homem, em sua busca pela supremacia, tem conseguido reduzir esse misterioso poder, o útero, ao nível estrito de um órgão biológico cuja única função é reproduzir, abrigar a semente do homem.
Como se obedecesse a um chamado, Nélida ficou de pé, rodeou a mesa e veio parar-se atrás de mim.

— Conhece a história da Anunciação? — murmurou quase pegado a meu ouvido.

— Não — respondi, rindo.

Com esse mesmo sussurro confidencial me disse que na tradição judaico-cristã os homens são os únicos que escutam a voz de Deus. As mulheres, salvo a Virgem Maria, foram excluídas deste privilégio. Nélida disse que um anjo sussurrando à Maria era, logicamente, algo natural. Não o era em troca de que a Única coisa que pôde dizer-lhe foi que daria à luz o filho de Deus. O útero não recebeu conhecimento e sim, melhor dizendo, a promessa da semente de Deus. Um deus masculino, que por sua vez gerava outro deus masculino.

Eu queria pensar, reflectir acerca de tudo o que se havia dito, mas minha mente estava em total confusão.

— E o que acontece com os feiticeiros homens? — perguntei. — Eles não têm útero e, contudo, estão claramente conectados com o espírito.

Esperanza me olhou com uma satisfação que não tentou dissimular; depois olhou por cima do seu ombro como temerosa de que alguém a escutasse. Num murmúrio, apenas disse:

— Os feiticeiros podem alinhar-se com o espírito pois abandonam o que especificamente define a sua masculinidade. Já não são homens.
(…)

“Sonhos Lúcidos”
FLORINDA DONNER-GRAU
* sugestão minha...

4 comentários:

Astrid Annabelle disse...

Rosa, há muitos atrás li (devorei) um livro dessa autora. Não me lembro o título do mesmo. Acredita? pois é...mas a sua linguagem me soa sempre familiar...gosto muito.
Belo texto.
Beijos
Astrid Annabelle

rosaleonor disse...

Eu também não sei se o cheguei a ler há imenso anos - tenho relido alguns livros de carlos castanheda, mas há um especial de taicha abela, a travessia das feiticeiras que é mesmo demais...

grande beijinho

rl

A VIDA É UM ETERNO APRENDIZADO disse...

Olá!
Peço permissão para seguir seu blog,pois achei ele muito útil nas minhas leituras.
Grande abraço
se cuida

rosaleonor disse...

oLÁ...tenho muito gosto que me acompanhe...
obrigada e um abraço para si também

rleonor