UM RETRATO DE PORTUGAL A RIGOR...
A trapeira
de Job
José
António Barreiros, advogado
Isto que eu
vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
(...)Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os
novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o
último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam
por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e
mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou
a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio
fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os
feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em
que a beautiful people era o símbolo de status, como a língua nos cães para a
sua raça.
Foram anos
em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades
uma festa permanente, entre o coktail party e a rave.
Houve quem
pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com
futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os
labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam,
salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro
atulhada do que não lhes custara a cavar
e às vezes nem obrigadoO país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis
dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto
enquanto puderam,a sub-gente.
Os
intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de
classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas
supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação
substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação
universal.
Um dia os
computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e
tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava
chamar-se Deus, confundindo-se com o seu
filho e mais uma trinitária pomba.
A chegada
das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a
viver de
pexisbeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas
chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim
prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e
até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker?
A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do
tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse,
Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado,
veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe
devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital
rende. Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos
instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e
já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as
pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que
vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar
dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na
figueira infernal do dinheiro. Satanás ria.
O Inferno começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no
pau de sebo perpétuo
do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos,
quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo,
a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde
eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbecilidades telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é
nula.
E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses
tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e
da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos
miolos de pensarem, pensando por nós.
Estamos nisto.
Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou.
Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira.
O Job que somos grande parte de nós.
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