O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, novembro 09, 2012

UM HOMEM LÚCIDO - vale a pena ler

 


UM RETRATO DE PORTUGAL A RIGOR...
 
 A sua queda: "o admirável mundo novo do crédito"... 

A trapeira de Job

José António Barreiros, advogado

Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
 (...)
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.

Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos  outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status, como a língua nos cães para a sua raça.

Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave.

Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada  do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado
O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos  cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.

Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam,a sub-gente.
Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal.

Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um  acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus,  confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.

 Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a  servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.

A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a
viver de pexisbeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker?

A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende. Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.

Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria.

O Inferno começava na terra.

Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo
do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbecilidades telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula.

E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.

Estamos nisto.

Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou.
Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira.

O Job que somos grande parte de nós.

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