O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, julho 15, 2021

o vínculo mãe-filha


POR QUE É QUE AS MULHERES PRECISAM DA DEUSA

Carol P. Christ



Carol P. Christ, teóloga feminista, ou teaóloga, autora do famoso ensaio de 1979 "Por que é que as mulheres precisam da Deusa", que segundo consta terá sido o texto que mais mulheres levou a abraçar o Movimento da Deusa (e que se pode ler aqui em português:
http://mulheresprecisamdadeusa.blogspot.com/?m=1)
deixou esta dimensão hoje. Carol P.

Excerto de texto traduzido para português por Luiza Frazão

Publicado em 17th October 2013

(...)

Adrienne Rich assinalou que o vínculo mãe-filha, talvez o mais importante dos vínculos das mulheres  "ressonante de encargos ... o fluxo de energia entre dois corpos biologicamente iguais, um das quais tendo permanecido em êxtase amniótico dentro do outro, um das quais tendo sofrido para dar à luz o outro"23, raramente é celebrado na religião e na cultura patriarcal. O Cristianismo celebra a relação do pai com o filho e a relação da mãe com o filho, mas a história da mãe e da filha está em falta. Assim, também, na literatura patriarcal e na psicologia raramente existem as mães e as filhas. Volumes foram escritos sobre o complexo de Édipo, mas pouco tem sido escrito sobre a relação da menina com a mãe. Além disso, como Simone de Beauvoir observou, a relação mãe-filha está distorcida no patriarcado, porque a mãe deve dar a sua filha aos homens numa cultura definida pelos valores masculinos em que as mulheres são consideradas inferiores. A mãe deve educar a filha no sentido da sua subordinação ao homem, e se esta desafia as normas, a mãe muito provavelmente vai colocar-se ao lado das estruturas patriarcais contra a sua própria filha24.

 Esses padrões estão a começar a mudar na nova cultura criada pelas mulheres em que os laços entre as mulheres começam a ser valorizados. Holly Near tem escrito várias canções que celebram estes laços entre mulheres e a herança que transmitem umas às outras. Numa das suas melhores canções ela fala duma "mulher do tempo antigo" que está "à espera de morrer." A jovem sente pena pela vida que passou para a velha e começa a chorar, mas a velha olhando-a nos olhos diz-lhe: "Se eu não tivesse sofrido, tu não estarias agora a usar esse par de jeans /Ser uma velha do tempo antigo não é tão mau quanto parece"25. Esta canção, que segundo a autora, foi inspirada pela sua avó, exprime e celebra um vínculo e uma herança transmitida de uma mulher para outra. Noutra das suas canções, Near canta sobre uma mãe que com as suas botas de caminhada percorre pela primeira vez o mundo com a sua menina”. Nesta canção, a mãe diz ao andarilho que tem viajado com elas para ajudar com as malas para viajar sozinho, se ele acha que "viajar a três é mais arrastado", porque "eu tenho uma pequenina que me ama tanto quanto tu precisas de mim / e, querido, acredita que isto é amor que chegue"26. Esta canção é importante porque a mãe coloca o seu relacionamento com a filha acima do relacionamento com um homem, algo que as mulheres raramente fazem no patriarcado27.

 Praticamente  a única história de mãe e filha, que foi transmitida na cultura ocidental é o mito de Deméter e Perséfone, que foi a base dos ritos religiosos celebrados apenas por mulheres, a Tesmofória, e mais tarde formou a base dos mistérios de Elêusis, que eram abertos a todas as pessoas que falavam grego. Nesta história, a filha, Perséfone, é raptada e levada para longe da mãe, Deméter, pelo Deus do submundo. Recusando-se a aceitar este estado de coisas, Deméter enfurece-se e não permite a fertilidade da terra até a filha lhe ser devolvida.

 O que é importante para as mulheres nesta história é que uma mãe luta pela filha e pela sua relação com ela, o que é completamente diferente da relação da mãe com a filha no patriarcado. A "pré-disposição" criada pela história de Deméter e Perséfone é a da celebração do vínculo mãe-filha, e a "motivação" vai no sentido de mães e filhas afirmarem a herança passada de mãe para a filha, rejeitando o padrão patriarcal, onde a primeira lealdade primárias da mãe e da filha deve ser para com o homem28.

 O símbolo da Deusa tem muito a oferecer às mulheres que lutam para se livrar das "poderosas, invasivas, e duradouras “pré-disposições” e “motivações", que vão no sentido da desvalorização do poder feminino, da desconfiança em relação à mulher, da difamação do seu corpo, bem como da negação dos vínculos e da herança que passa de umas para as outras, tudo isso engendrado pela religião patriarcal. Como as mulheres se esforçam por criar uma nova cultura em que o seu poder, corpo, vontade e vínculos são honrados e celebrados, é natural que a Deusa ressurja agora como símbolo da beleza recém-descoberta, da força e do poder das mulheres.

 

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