O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quarta-feira, março 16, 2016


O Grau da Nossa Emancipação


" A esfera da consciência reduz-se na acção; por isso ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às propriedades do ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das iniciativas de que nos libertámos, bem como pela nossa capacidade de converter em não-objecto todo o objecto. Mas nada significa falar de emancipação a propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.

Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas. Agito-me e portanto emito um mundo tão suspeito como a minha especulação, que o justifica, adopto o movimento que me transforma em gerador de ser, em artesão de ficções, ao mesmo tempo que a minha veia cosmogónica me faz esquecer que, arrastado pelo turbilhão dos actos, não passo de um acólito do tempo, de um agente de universos caducos.
Empanturrados de sensações e do seu corolário, o devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio, condenados de eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas de superfície que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.

Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda a sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.

Resistir à sua felicidade é coisa que a maioria consegue; a infelicidade, no entanto, é muito mais insidiosa. Já a provásteis? Jamais vos sentires saciados, procurá-la-eis com avidez e de preferência nos lugares onde ela não se encontra, mas projectá-la-eis neles, porque, sem ela, tudo vos pareceria inútil e baço. Onde quer que a infelicidade se encontre, expulsa o mistério e torna-o luminoso. Sabor e chave das coisas, acidente e obsessão, capricho e necessidade, far-vos-á amar a aparência no que ela tem de mais poderoso, de mais duradouro e de mais verdadeiro, e amarrar-vos-á para sempre porque, «intensa» por natureza, é, como toda a «intensidade», servidão, sujeição. A alma indiferente e nula, a alma desentravada - como chegar a ela? E como conquistar a ausência, a liberdade da ausência? Tal liberdade jamais figurará entre os nossos costumes, tal como neles não figurará o «sonho do espírito infinito».

Emil Cioran, in 'Pensar Contra Si Próprio'

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