O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

terça-feira, março 07, 2023

Qualquer aspecto de nossa condição humana é e será sempre psicossomático

 

A SOMATIZAÇÃO DO MATRICÍDIO



 

A maioria dos úteros foram espásticos* durante séculos e por isso os nascimentos foram dolorosos.

W. REICH

 "Para compreender como a sexualidade feminina pôde permanecer tão reprimida através dos séculos, até o ponto de desaparecer no grau em que se fez, é imprescindível perceber que a repressão tem um componente somático.

 Qualquer aspeto de nossa condição humana é e será sempre psicossomático; e ainda que nos custe pensar e viver nessa perspetiva, socializad@s (formatadas) como estamos numa cultura que artificialmente cinde o corpo-mente. Em realidade essa cisão não é mais do que o encobrimento da perda da consciência do que se passa dentro de nós; mais precisamente é o resultado do que nos fazem  para nos impedir que nós mesmas construamos uma consciência conforme ou de acordo com o movimento da vida, com o desejo auto-regulador de nosso ser psicossomático. Porque somente então se pode codificar o anelo  (o desejo)  frustrado, e idealizá-lo e decorá-lo com falsas imagens, desvinculando-o do seu sentido auto-regulador dos corpos, para inseri-lo então no sistema de repressão do Poder. Sempre a devastação, na introdução da carência, sendo esse  o primeiro.

 A perda de contacto com nosso próprio corpo, ou seja, a cisão consciência-corpo foi uma estratégia imprescindível do poder e é uma característica da sociedade patriarcal. Porque o corpo não somente tem sabedoria, mas também muita força, muita capacidade de resistência e rebelião.

Conseguimos chegar muito longe da mão de Reich e de Deleuze e Guattari, compreendendo como se construi o sistema de repressão de nossa civilização, combinando o ‘refoulement’* com a repressão exterior. Sem o ‘refoulement’ (o desvio)  realizado inconscientemente, a repressão exterior por si só no poderia explicar o funcionamento da sociedade.

W. Reich não só descobriu a couraça muscular resultante do ‘refoulement’ (reprimir em si o desejo natural), mas também que esse reprimir em si esse desejo dos indivíduos é uma função ao serviço da repressão geral da sociedade; e Deleuze e Guattari explicaram como a repressão geral se insere na criatura humana, atuando sobre a produção de seus desejos, para que ela mesma os ‘refoule’ (rejeite):

A foça de Reich radica em ter mostrado como o ‘refoulement’ (reprimir) dependia da repressão geral… já que a repressão geral precisamente necessita do ‘refoulement’ para formar sujeitos dóceis… A repressão geral somente se exerce sobre o desejo -e não só sobre necessidades ou interesses- através da repressão sexual.

 Para atuar sobre o desejo das criaturas, continuavam Deleuze e Guattari, além da instituição da família, fazia falta uma importantíssima operação da desfiguração do mesmo: dar ‘uma imagem enganada (truquée) do que desejamos, convertê-lo em pulsões incestuosas; assim sente vergonha com o desejo, fica entorpecido, já que senão, qual seria a outra forma de conjurar o poder de rebelião e de revolução do desejo?

Durante milénios o desejo feminino-materno das mulheres, e o desejo materno das criaturas foi desfigurado e culpabilizado colocando a etiqueta de incestuoso; ou seja de desejos coitais, que estão, em realidade muito longe dos desejos maternais e dos desejos primais indiferenciados, em geral."

(...)

in ASSALTO AO HADES de CASILDA RODRIGAÑEZ BUSTOS
(tradução de Sabine Carlotti)

* ESPASTICOS - Espasticidade é quando ocorre um aumento do tônus muscular, envolvendo hipertonia e hiper-reflexia, no momento da contração muscular, causado por uma condição neurológica anormal.

* O substantivo ‘refoulement’ e o verbo ‘refouler’ em francês querem dizer ‘forçar para atrás’. Referido à psique, indica que algo inibimos e logo esquecido, ou seja, colocamos com força para atrás no inconsciente.

1 comentário:

Luz de Luna disse...

Rosa isso é tão distante para mim e creio que para outras mulheres também. Meu útero carrega a mesma dor, do mesmo lado, a mesma informação. Como pode que ainda não sabemos como lidar com o nosso próprio corpo? E eu penso que loucura é essa de carregar essas informações de dores nas ancestrais? Já que nosso espírito é livre...