A DOCE VOZ DA PIEDADE PERDIDA
(ROMANCE)
Falas da Piedade
A voz silenciosa das mulheres faz parte de um mundo secreto, imperturbado. Ainda hoje é assim, apesar dos focos sobre a apregoada libertação feminina.
Já não verei muitas mais coisas, porque o tempo do fim se aproxima, mas acredito na perenidade desse mundo onde só as mulheres têm a chave, apesar de toda a algazarra daqueles que querem sepultar os rituais onde vagueia o espírito das ancestrais mulheres.
Viver no mundo da submissão absoluto também tem as suas vantagens: pode inventar-se um mundo interior próprio. E, quando somos agredidas, essa agressão apenas atinge a parte visível, material, do todo que somos.
É no coração dos escravos que o sonho é mais intenso. Aqueles que têm uma vida exterior onde abunda o supérfluo não sabem os tesouros que se podem encontrar no silêncio e na clausura.
As minhas netas caminham até mim como pequenas borboletas tontas. As minhas filhas vagueiam entre esses dois mundos: o que foi, e é, o meu; e o que julgam ser um mundo diferente, o delas.
Mas, tanto as minhas filhas, como as minhas netas, hão-de provar até ao fim o fel desta mundanidade sem esperança. Então será o tempo de se recolherem ao templo onde as grandes feiticeiras celebram a eternidade feminina.
Elas têm uma desvantagem. Não têm ninguém que as prepare para esse mundo de silêncios e renúncias. Eu tive nas velhas mulheres da minha infância, sobretudo na minha mãe e avós, os guias que me ensinaram os rituais do mundo matriarcal.
Os homens, mesmo os velhos patriarcas, nunca se aproximaram desse território interdito. Nem queriam. Na sua superficial superioridade sempre imaginaram o mundo das mulheres como o lugar de momentos repulsivos – como nos períodos menstruais – e a permanente vivência dos mexericos.
Nem mesmo nos momentos de toda a aflição, em que só nós os salvávamos, eles recorriam a nós como companheiras do sonho e da desdita, mas como o senhor recorre a seu escravo para fazer da vida algo de prazenteiro.
Manuel Monteiro
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