O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, novembro 18, 2023

Çatal Huyuk - a organização comunitária era matrilinear e matrilocal

 


"Há evidências arqueológicas da existência de sociedades no Neolítico e na Idade do Bronze nas quais as mulheres eram muito valorizadas, o que também pode indicar que tivessem certo poder. A maioria dessas evidências consiste de imagens de mulheres que foram interpretadas como deusas da fertilidade; e, da Idade do Bronze, artefatos artísticos que retratam mulheres com dignidade e sinais de alto status. Avaliaremos as evidências das deusas no Capítulo Sete e discutiremos sociedades mesopotâmicas na Idade do Bronze ao longo deste livro. Agora vamos revisar brevemente as evidências de um caso específico, citado muitas vezes por defensores da existência do matriarcado: Çatal Hüyük, na Anatólia (atual Turquia). 

As escavações de James Mellaart, em especial em Hacilar e Çatal Hüyük, trouxeram esclarecimentos relevantes sobre o desenvolvimento das primeiras cidades na região. Çatal Hüyük, um assentamento urbano neolítico de 6 mil a 8 mil pessoas, foi construído em camadas consecutivas durante um período de cerca de 530 anos (6250-5720 a.C.), com novas cidades sobre as ruínas de assentamentos mais antigos. A comparação entre as várias camadas de assentamento em Çatal Hüyük e as de uma aldeia menor e mais antiga, Hacilar (construída entre 7040 e 7000 a.C.), oferece-nos conhecimento sobre uma sociedade em seus primórdios submetida à mudança histórica. [ 53 ] Çatal Hüyük foi uma cidade construída como uma colmeia de residências individuais que pouco variavam em tamanho e mobiliário. 

Entrava-se nas casas pelo telhado, por meio de uma escada; cada casa era equipada com uma lareira de tijolo cru e um forno. Todas as casas tinham uma plataforma onde se dormia, e embaixo delas foram encontradas ossadas de mulheres e também de crianças. Plataformas menores foram encontradas em posições variadas em diferentes dormitórios, ora com homens, ora com crianças enterrados sob elas, mas nunca homens e crianças juntos. Mulheres eram enterradas com espelhos, joias e ferramentas feitas de ossos e pedras; homens eram enterrados com armas, argolas, contas e ferramentas. Tecidos e recipientes de madeira encontrados no local indicam um alto nível de habilidade e especialização, bem como amplo comércio. Mellaart encontrou tapetes de junco, cestos de tecido e muitos objetos feitos de obsidiana, um indício de que a cidade estava envolvida em comércio de longa distância e gozava de riqueza considerável. Foram encontradas ainda evidências de uma grande variedade de alimentos e grãos, e de ovelhas, cabras e cães domesticados nas camadas mais recentes. Mellaart acha que apenas gente privilegiada era enterrada nas casas. Das 400 pessoas encontradas lá, apenas 11 tinham enterro “ocre” – ou seja, as ossadas estavam pintadas com ocre vermelho, o que Mellaart interpreta como sinal de alto status. Como a maioria destas era de mulheres, Mellaart argumenta que as mulheres tinham alto status na sociedade e especula que podem ter sido sacerdotisas. Esse indício de certa maneira perde força pelo fato de que, das 222 ossadas adultas encontradas em Çatal Hüyük, 136 eram de mulheres, uma proporção surpreendentemente alta. [ 54 ] Se a maioria dos enterros “ocre” encontrados por Mellaart era de mulheres, isso poderia apenas se encaixar na proporção sexual da população geral. Mas indica, contudo, que as mulheres estavam entre as pessoas de alta classe, desde que a especulação de Mellaart sobre o significado do enterro “ocre” esteja correta. A ausência de ruas, de uma grande praça pública ou de um palácio, bem como o tamanho e o mobiliário uniformes das casas, levaram Mellaart a considerar que não havia hierarquia nem autoridade política central em Çatal Hüyük, e que a autoridade era compartilhada entre os habitantes. A primeira consideração parece adequada e pode ser sustentada por evidências comparativas, mas não podemos provar, com base nisso, que a autoridade era compartilhada. A autoridade, mesmo na ausência de uma estrutura de palácio ou órgão administrativo formal, pode ter ficado a cargo de grupos de parentes ou de um grupo de anciãos. Nada nos achados de Mellaart prova a autoridade compartilhada. 

As várias camadas de Çatal Hüyük revelam uma quantidade extraordinariamente grande de santuários, que eram decorados com pintura nas paredes, ornamentos de gesso e estátuas. Não há representações de humanos nas camadas mais baixas da escavação, apenas touros e carneiros, pinturas de animais e chifres de touros. Mellaart interpreta esses achados como representações simbólicas de deuses homens. 

As primeiras representações de imagens femininas aparecem na camada de 6200 a.C., com seios, nádegas e quadris exagerados de forma grosseira. Algumas aparecem sentadas, uma aparece parindo; elas estão cercadas por seios de gesso nas paredes, alguns dos quais moldados sobre crânios e mandíbulas de animais. Há também uma estátua singular de um homem e uma mulher se abraçando e, ao lado dela, a estátua de uma mulher segurando uma criança. Mellaart chama essas imagens de deusas e observa que são associadas com a vida e a morte (dentes e mandíbulas de abutres nos seios); ele também nota a associação delas com padrões de flores, grãos e verduras na decoração das paredes, e com leopardos (símbolo da caça) e abutres (símbolo da morte). Nas camadas mais recentes não aparecem representações de deuses homens. Mellaart argumenta que o homem de Çatal Hüyük era um objeto de orgulho, valorizado por sua virilidade, e que seu papel na procriação era compreendido. Ele acredita que homens e mulheres compartilhavam o poder e o controle sobre a comunidade no período inicial e que ambos participavam das caçadas. A última afirmação baseia-se em pinturas de parede que mostram mulheres participando de uma cena de ritual ou caçada com um cervo e um javali. Essa parece uma conclusão bastante exagerada, considerando-se que ambas as pinturas mostram uma grande quantidade de homens caçando e cercando o animal, enquanto apenas duas figuras femininas são visíveis, ambas de pernas abertas, o que pode indicar algum simbolismo sexual, embora pareça um tanto incompatível com a participação de mulheres em caçadas. [ 55 ] Da estrutura das construções e plataformas, Mellaart compreende que a organização comunitária era matrilinear e matrilocal. Essa última suposição é bastante provável, com base em evidências. Ele acredita que as mulheres desenvolveram a agricultura e controlavam seus produtos. Pela ausência de evidências de sacrifício humano nos santuários, ele argumenta que não havia autoridade central nem casta militar, e diz que em toda a Çatal Hüyük não existem evidências de guerra ao longo de um período de mil anos. Mellaart também defende que as mulheres criaram a religião neolítica e que, sobretudo, eram artistas. Esses achados e evidências foram interpretados de maneiras divergentes. Em uma pesquisa acadêmica, P. Singh detalha todas as evidências de Mellaart e as contextualiza com outros assentamentos neolíticos, mas omite as conclusões de Mellaart, exceto sobre a economia da cidade. [ 56 ] Em um estudo de 1976, Ian Todd, que participou de algumas das escavações de Çatal.
(...)

Acrescentando-se isso às outras evidências que citamos, podemos afirmar que a subordinação feminina não é universal, mesmo que não tenhamos provas da existência de uma sociedade matriarcal. Porém as mulheres, assim como os homens, têm grande necessidade de um sistema explicativo que não apenas nos diga o que é e por que é assim, mas que também nos ofereça uma visão alternativa do futuro. [ 62 ] Portanto, antes que prossigamos para as evidências históricas do estabelecimento do patriarcado, vamos apresentar um modelo hipotético – para libertar a mente e a alma, brincar com as possibilidades e considerar alternativas. "

in A CRIAÇÃO DO PATRIARCADO

GERDA LERNER 

Sem comentários: