O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, novembro 23, 2023

O TABU DO SEXO E O ENCOURAÇAMENTO


A origem do nosso mal estar humano não é outro senão o não poder deixar fluir o desejo dos nossos corpos...

A desconexão: 
a outra cara da moeda do encouraçamento. 


Para compreender o nosso estado de desconexão interna devemos aprofundar em alguns aspetos que fazem parte do que somos, e ver como os seres humanos deviam de funcionar. Refiro-me à explicação dos biólogos Maturana e Varela em relação à autopoiese da vida (a capacidade de auto criar-se):
Os sistemas autopoiéticos são sistemas que se geram a si mesmos e se autorregulam. Tal como resumia Jesús Ibáñez: são organizacionalmente fechados (porque em vez de serem programados desde fora geram-se a si mesmos), e informacionalmente abertos (recebem e produzem informação de maneira contínua).

Quando falamos que os organismos vivos são sistemas abertos, estamos a dizer que se trata de matéria e energia (‘in-formação, no sentido etimológico da palavra) em permanente inter-relação no ecossistema onde cada ente orgânico está integrado; nesse sentido somos sistemas abertos. Além disso os organismos vivos são sistemas muito complexos; estamos constituídos por diferentes sistemas com diferentes níveis de organização: as moléculas, o plasma, as células, os tecidos, os órgãos, etc. Podemos estudar cada nível por separado, porque cada um tem a sua própria capacidade de autorregulação e de facto autorregulam-se (nesse sentido são chamados de sistemas fechados); porém essa autorregulação própria depende da sua abertura aos demais sistemas, os que ela abarca e os que a abraçam. Nenhum sistema pode manter-se isoladamente porque termina com uma autodestruição.

Compreende-se também que cada nível de organização de um organismo tem que ter por finalidade a do conjunto do organismo; e também que a finalidade do conjunto deve permitir a finalidade interna de cada nível de organização subjacente. É o que chamamos sinergia. A vida é sinérgica.

Essa sincronização funcional ou sinergia de todos os sistemas é resultado de 4 bilhões de evolução. A vida é sinérgica; o seu fluir constante harmonioso, an-árquico e impredizível não pode ser objeto de dominação, somente de respeito.

Portanto percebemos porque um pensamento linear, mecânico ou determinista como o pensamento do nosso racionalismo clássico é enganoso: somente existe na nossa imaginação, no mundo das ideias, mas não nos processos materiais da vida.

Como diz a Bíblia, um dos livros sagrados da nossa civilização: Submetei-a e dominai… sobre tudo quanto vive e move-se na Terra. E assim foi; dominar os ecossistemas internos e externos foi a arte ou o artifício, que a humanidade aplicou ao longo dos últimos quatro o seis milénios, ao tentar corrigir quatro bilhões de anos de autopoiese e autorregulação. Agora estamos a ver os resultados.

Quando um organismo bloqueia o transvasamento de matéria e energia, inicia um processo de degradação da sua energia interna e começa a destruir mais ou menos a sua estrutura orgânica. Ou seja, bloquear as vias ou os meios mediante os que os sistemas interrelacionam é, de alguma forma, implementar mecanismos de desvitalização, de enfermidade ou de morte.

A dominação paralisa o fluir espontâneo da vida, e insere uma estrutura de funcionamento artificiosamente desenhada, feita de leis, instituições, disciplina, métodos de conduta, hábitos e costumes. De facto as primeiras leis escritas que regulam as relações de parentesco, a hierarquia e a propriedade (como o Código de Hammarabi), aparecem com a civilização patriarcal. Frente à sabedoria orgânica dos corpos, a dominação opõe um desenho artificioso e patogénico, fruto da sua experiência no saqueio e na escravização de tudo o que vive e move-se sobre a terra.

A origem do nosso mal estar não é outra que o não poder deixar fluir os nossos corpos: internamente pelo rompimento da autorregulação psicossomática, e para fora, pela hostilidade do entorno ao que devia abrir-se o corpo; entorno que a sua vez atua impedindo que os sistemas de nosso organismo restaurem a autorregulação.

A importância da função que a sexualidade cumpre na retroalimentação e autorregulação da vida humana foi resumido por Reich numa frase:


O processo sexual, ou seja, o processo de expansão do prazer, é o processo vital produtivo per se.


A sexualidade é energia vital, o que anima os nossos corpos -a sua inibição, o que nos desanima-.
A sua sublimação e a sua transformação em ‘ânima’ espiritual, como dizia Jesús Ibáñez, nos descompõe. Acredito que todo o mundo conhece intuitivamente a importância que o prazer tem. Somente precisa de um pouco de honestidade e de compromisso com a vida e a verdade, para reconhecê-lo, para pensá-lo e para dizê-lo. E também para não cair nos enganos publicitários da sexualidade secundária, perversa, do homem de hoje.

Após essa breve reflexão, voltemos a nosso estado de desconexão interna que resulta da socialização das pulsões sexuais, e na estagnação da libido e da capacidade orgástica. Se de maneira sistemática auto inibimos as pulsões sexuais, e colocamos dificuldades ao ritmo uníssono interno, sinérgico dos nossos sistemas, da mesma forma não poderemos estabelecer na hora da simbiose do período reprodutivo, o ritmo uníssono, cego e visceral do desejo do outro simbionte.

p127
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A DESCONEXÃO INTERNA

A desconexão interna existe de alguma forma em todas as mulheres socializadas no patriarcado, e sobretudo no mundo ocidental onde a componente inconsciente da ediposisação é mais importante que em outras culturas patriarcais; ela existe até em mulheres que racionalmente tratam de estabelecer a sincronização com a sua criança porém, encontram um grave obstáculo na sua própria desconexão. Quantas mulheres conseguem vivenciar e perceber o tremor do seu útero na hora de dar de mamar, como o anatomista francês Ambroise Paré tinha a convicção que sucedia? Quantas mulheres vem a sua capacidade orgástica refletida na imagem dos polvos micénicos cujos tentáculos, a maneira de uma onda rítmica, abraçam todo o corpo do cântaro onde foram pintados?


A desconexão desempenha um papel muito importante para impedir que o desejo percorra o campo social (Deleuze e Guattari). Os seres humanos, além de produzir desejos, fomos feitos para perceber e acolher o desejo do outro ou da outra; e para que quando o desejo do outro ou da outra nos alcance, o nosso desejo seja induzido. E tudo isso é corroborado quando percebemos que o que nos deixa apaixonados por uma pessoa, é o seu próprio desejo que nos alcança e nos comove desde a pele até o útero; quando acontece tal coisa é o sinal de que o amor que nos professam é verdadeiro. Mas pelo visto resulta difícil deixar-nos alcançar pelo desejo do outro ou da outra! Estamos tão desconectados das nossas próprias pulsões, tão encouraçadas, que não permitimos que o fluido amoroso transpasse as defesas e a nossa pele, e nos alcance por dentro. Assim é como a lei do Tabu do Sexo é cumprida, mediante a desconexão interna de nossos corpos que torna tão difícil o palpitar uníssono dos uns e das outras.

Quando alguém fala, e o escutamos com certa frequência, que não sabe o que sente pela outra pessoa, está a por de manifesto a sua desconexão.
A desconexão das nossas pulsões, o desmoronamento corporal, vêm a somar-se às normas sociais estabelecidas, é assim como impede-se que o desejo percorra o campo social.

É muito importante entender o papel da desconexão interna dos corpos em nosso sistema de repressão da sexualidade aqui e agora. Isso também nos ajuda a percebe como o Tabu do Sexo pôde instalar-se nos começos dessa civilização; como pôde acontecer e como foi a transição de uma forma de vida regulada pela sexualidade espontânea (matrística), a uma forma de vida que reprime o seu desenvolvimento espontâneo e logo a ordena segundo uma lei (o patriarcado). A desconexão interna ajuda-nos também a entender o que alguns registos históricos contam e que agora resultam tão incríveis e dificilmente imagináveis, por exemplo quando a liberdade de amar não era chamada de promiscuidade. Como diz Maryse Choisy por muitos incríveis que nos pareça essas informações, contam com o testemunho da história. Como aquilo que o amor ao próximo foi primeiro um amor carnal até que tornou-se um ‘amor’ “espiritual”; ou que antes da eleição do casal o que funcionava era o abandono ao primeiro que chegava; o que o matrimonio monógamo era considerado uma perversão contra natureza e uma imoralidade; ou que o hetairismo foi uma resistência ativa das mulheres ao matrimónio, até que consolidou a ordem sexual e então o hetairismo converteu-se em prostituição, que logo ganhou o adjetivo de ‘sagrada’ ao tentar retirar o pequeno detalhe de que não tinha troca mercantil. Outro pequeno detalhe que joga por terra a crença de que o matrimonio, chamado “demétrico”, apareceu pela primeira vez como um pacto contratual e explícito.

A desconexão interna teve que acompanhar necessariamente a instalação da ordem sexual falocrática; a perversão da sexualidade elimina o seu mecanismo próprio de funcionamento: o fluir da libido.

Uma vez estabelecida a desconexão, a pulsão sexual perverte-se, e então é quando o desejo do outro ou da outra pode converter-se e sentir-se como uma agressão. De outra forma, o desejo do outro nunca podia sentir-se como uma agressão, porque o desejo é respeitoso pela sua própria condição. Por isso o amor ao próximo era carnal e funcionava o abandono ao primeiro que chegava, em lugar da eleição do par.

Outro aspeto importante associado à desconexão é o nojo aos fluidos corporais, simbolicamente representado com a secura, assépsia, a limpeza e a pureza. É um nojo para com os fluidos d@s outr@s e para com os próprios, que acompanha necessariamente à auto inibição do desejo; é uma componente do mecanismo de auto inibição, porque em nosso inconsciente o desejo segue estando imediatamente associado aos seus fluidos.

A socialização na repressão das pulsões sexuais, a repressão do desejo materno desde o nascimento, a alteração do processo natural e normal do parto, o rechaço a compartilhar os fluidos corporais. Tudo isso produz o inevitável encouraçamento (seja mais ou menos inconsciente ou voluntário por parte da mãe), e vai organizar pouco a pouco um estado de desconexão interna na mulher: entre a pulsão da libido e a fisiologia, entre a sua mente e o resto do corpo, entre o inconsciente e o consciente, e entre uns processos fisiológicos e outros; a matrofagia e a mãe impostora construi-se em base a processos psicossomáticos reais e muito concretos, e não é tão só uma operação no plano social ou no plano da racionalidade individual.

O evidente é que se a mãe tem um grau importante de desconexões internas, dificilmente poderá conectar-se com a criança; porque o bonding*, a unidade mãe-criatura, estabelece-se a nível libidinal, a nível das pulsões, do desejo, para manter a sinergia comum dos sistema dos dois corpos. Como dizia em outros escritos, O pior atrás da mamadeira, não é que o leite artificial nutra pior o proteja menos; o pior é que rompe a relação libidinal.

p133

LIVRO: O ASSALTO AO HADES DE CACILDA R. BUSTUS



* o conceito de Bonding: o conceito antropológico de ‘díada’ (uma coisa só composta por dois) ou os conceitos definidos desde a psicanalise de ‘matriz uterina’, ou ‘unidade básica’ correspondem melhor com o conceito de Bonding.


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