Duas amigas, June, heterossexual, e Moira, lésbica, discutem na cozinha da primeira a última medida implementada pelo governo: a de congelar as contas bancárias de mulheres e providenciar o acesso às mesmas apenas aos homens mais próximos. June ainda tem a possibilidade de ter o seu dinheiro através do marido que assiste à discussão. É interpelado por Moira que o interroga acerca do reconhecimento da sua posição de poder ao que ele, um aliado, responde: “O que queres que faça, corte a pila no lava-loiça?”. Como se o feminismo fosse unicamente concebido para emascular homens e roubá-los da virilidade que lhes foi imposta mas que, na realidade, provavelmente nunca quiseram ter. Mas uma discussão rotineira. Podia acontecer em qualquer cozinha. Nossa.
Mais tarde June e Moira deslocam-se a uma Marcha em Boston pelos direitos das mulheres, reminiscente do que vimos a acontecer o ano passado nos Estados Unidos da América aquando da eleição do Presidente Donald Trump. Mas o resultado é bem diferente. Uma força policial secreta começa a alvejar mortalmente os protestantes, homens e mulheres. As amigas conseguem fugir mas vêem atrás delas os cadáveres espalhados pelas ruas. A destruição da realidade que viviam antes é agora irrevogável. Meses mais tarde reencontram-se numa sala que parece de um convento tornado quartel. June está vestida normalmente, depois de separada da filha e do marido. Moira, tal como a maioria das mulheres sentadas em círculo na sala, com um hábito vermelho sangue do pescoço aos pés e um barrete branco a esconder o cabelo. Uma mulher de porte e vestes militares e com discurso de fundamentalismo puritano, informa-as que foram escolhidas para se tornar “Servas”, a ser atribuídas a um casal poderoso, cuja Esposa é infértil, de modo a poderem conceber e gerar filhos e filhas para os seus empregadores.
Estamos em Gilead, uma América distópica em que a infertilidade se tornou norma. Uma fação de direita extremista foi ganhando avanço com a culpa atribuída aos hereges que se foram separando de Deus e dos ensinamentos divinos. As Putas – qualquer mulher contra o sistema – e as Traidoras de Género – lésbicas – foram perseguidas e apenas as férteis dadas uma oportunidade para se tornarem úteis para o sistema enquanto Servas. As restantes foram encaminhadas para as Colónias. Assim nos é apresentada The Handmaid’s Tale, uma série da Hulu adaptada do livro homónimo de Margaret Atwood. Nela, os Homens, anónimos, são os donos de tudo, das decisões políticas, familiares, sociais. O nosso olhar é a de June, nome verdadeiro agora proíbido e renomeada Offred para refletir o nome da Homem da família a quem foi atribuída. E todos os Homens que vemos através dela são sombras, figuras de papel.
Mas vemos as mulheres. Vemo-las bem. Outras Servas. As Martas, de uniforme verde-terra, criadas de casa. As Esposas, de azul como que a anunciar a sua frigidez ao Mundo. As Tias, parte da força militar que mantém a ordem em Gilead. Todas prostradas de forma a encaixar num rótulo em que possam ser controladas. Em que as mulheres são colocadas umas contras às outras em todos os momentos dos seus dias. À primeira vista todo este totalitarismo parece extremista e apenas possível em formato ficcional. Mas olhando atentamente vemos demasiados sinais do nosso Mundo e da América atual nos flashbacks como os que descritos inicialmente. Sentimos a ameaça da discriminação tornada lei. Sentimos os direitos ganhos serem gradualmente apagados sem possibilidade de retorno. Sentimos a apatia depressiva do conformismo das coisas que não vão mudar. Sentimos a luta a ser progressivamente silenciada.
The Handmaid’s Tale é aterradora. Desde o primeiro episódio ao último. Força-nos a olhar um Mundo ao virar da esquina do nosso. A um passo mínimos de desespero de nos tornarmos naquilo. Peões sem identidade. O olhar oferecido pela exímia e acutilante Ofred de Elizabeth Moss é horrífico e castrante. Da vontade própria. Do Ser. Bruce Miller, criador da série, dá palco ao feminino e muitos dos episódios são realizados por mulheres. E nelas vivemos imiscuídos. Na letargia profunda do quotidiano das Servas cuja única função é o serviço à Casa. Tudo culmina num ritual mensal de violação por parte do Dono assistido pela Esposa. Qualquer sinal de rebelião é punido fortemente, cujo castigo máximo é o do enforcamento público, para que todos possam assistir às consequências dos seus crimes: Herege, Paneleiro, Puta. Ou então de justiça levada a cabo pelas próprias Servas, um rito primitivo de erradicação de qualquer humanidade nelas presente.
Uma das personagens mais aterradoras, em particular para a comunidade LGBT, é a de Ofglen, protagonizada pela extraordinária Alexis Bledel. Uma Traidora de Género como Moira. Tenta não se conformar às vidas fantasmagóricas e desumanas que lhes são impostas e cedo vêmo-la amordaçada como um animal, de gritos abafados. Apenas os olhos deixam transparecer o puro terror que vive. De querer resistir mas não conseguir mais que a subjugação total e incontornável. De querer lutar apenas para ser subsequentemente humilhada e mutilada. De tentar Ser e ver todas as suas fugazes e voláteis aspirações erradicadas à sua frente.
Muitas vezes somos confrontadas e confrontados pela razão pela qual ainda lutamos. Porque ainda saímos às ruas. Pelos direitos das mulheres. Das pessoas LGBT. Das minorias. Porque gritamos. Porque marchamos. Muitas vezes com orgulho. Muitas vezes com raiva. É porque esta distopia está a um pestanejar de distância. Basta baixarmos os braços. Por um segundo. Com alarmes destes… não podemos fazê-lo. O cansaço não nos pode derrotar. A falta de esperança não nos pode petrificar. Ou estaremos, mais cedo que tarde, também nós numa sala de convento qualquer, a ter o nosso futuro escravizado. The Handmaid’s Tale é mais que ficção. É um ensurdecedor e penetrante alerta vermelho.
The Handmaid’s Tale tem exibição exclusiva em Portugal no NOS Play.
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