O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, agosto 01, 2019

A NATUREZA MÃE



A Mãe-Terra Provedora da Vida

"Sou parte integrante e muito especial da noção ampliada de Deus ou Grande Espírito. Essa força superior está expressa nos meus relevos, no cheiro das flores, no canto do japiim, na luz do vagalume, nos frutos do ingazeiro e nas límpidas águas do rio Curiau. Antes de ser mãe, sou filha do universo, sou a Mãe-Terra e venho falar um pouco dos meus sentimentos, minhas dores e esperanças. Em meio à guerra e destruição, atualmente tenho muito ouvido falarem em paz e preservação/conservação da natureza. A natureza, que é o meu corpo, feito para alimentar meus filhos e para ser sua casa, tem sido sistematicamente atacada e poluída ao longo de séculos!
(...)

Mesmo depois do aparecimento dos seres humanos, durante um tempo longo da sua presença por aqui, não houve grandes problemas ou desequilíbrios socioambientais, porque os antepassados humanos eram mais responsáveis, mais ajuizados e mais conscientes sobre o manejo dos bens naturais. Preocupavam-se com a coletividade, com os seus herdeiros e viam que a fonte da vida estava em cada folha, em cada ararinha-azul, em cada peixe e em cada pedra, por isso prezavam pelo equilíbrio ambiental. Aprenderam que o Grande Espírito está em todos os lugares e se comunica com todos através dos sons dos ventos, das águas, do canto do uirapuru e pelo colorido da plumagem do beija-flor.

Lembro que os seres humanos daquela época cultuavam a mim como divindade, usavam as plantas para curar os males do corpo e do espírito e se alimentavam da coleta e da caça sem danificar o ambiente onde viviam. Foram bons tempos, em que a inteligência humana unia-se à natureza para com ela criar e recriar a beleza da vida. Mas essa inteligência, guiada pela ambição, um dia achou que o mundo era um lugar temível e perigoso.
(...)

Não tenho dúvida de que ao se desligarem da espiritualidade dos antepassados, os meus filhos humanos se voltaram contra mim. Perderam a noção do caráter sagrado da natureza e firmaram outro pacto, em que o sagrado está no egoísmo e na ganância. Em última instância, o sagrado pactuado no mundo desencantado está na destruição da provedora da vida: a Mãe-Terra.

É lamentável isso tudo, pois não quero declarar guerra contra a meu filhos, pelo contrário, convido-os para um novo pacto, para novas atitudes que reencantem os corações, no sentido de perceberem que não quero mal algum a ninguém. Minha proposta não é a criação de igrejas ou dogmas para me cultuarem, quero apenas que percebam que minha integridade é necessária para a sobrevivência da vida em todas as suas formas. Reencantar corações é transformar o egoísmo e a irresponsabilidade em práticas baseadas na concepção de que a natureza é bela, sagrada e vital. Os corações reencantados tomarão atitudes de respeito à Mãe-Terra, tendo-a como sagrada, gerando ações e compromissos de proteção efetivos com todos os elementos da natureza.
(...)
Que fique claro que sou um organismo vivo e inteligente, feito para gerar a vida e protegê-la, no entanto, o meu desequilíbrio pode exterminar tudo a qualquer tempo, bastando promover o meu congelamento por cem anos, por exemplo. Depois poderia me descongelar para tentar gerar novas formas de vida, quem sabe seres humanos mais espiritualizados, sábios e responsáveis.

O melhor caminho mesmo é a busca do entendimento, é darmos as mãos para tentarmos reconstruir tudo o que os seres humanos destruíram em nome do desenvolvimento. Ainda é tempo de fazermos novos acordos, pactos para serem cumpridos, compromissos que visem a perpetuação do canto do sabiá, os ventos frescos do sul, as chuvas regulares de março e a reprodução da macaúba no meio da densa floresta. Está passando da hora dos meus filhos buscarem a humildade e cederem para compreender que a força suprema, criadora e movedora de todas as coisas é a Mãe-Terra, que se manifesta a todo o momento pela presença da borboleta, das flores e dos ventos que assopram nos nossos cabelos. Minha felicidade será imensa em saber que os seres humanos querem paz e o bem comum. Quando chegarem a esse ponto, ficarei mais tranquila e, com a força do Grande Espírito, vou buscar me regenerar, fechar minhas feridas e receber novamente em meus braços os meus filhos!"

Edson Kayapó - Na colecção: Índios na Visão dos Índios. Memória da Mãe Terra



Sem comentários: