O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

segunda-feira, outubro 05, 2020

ENTREVISTA POR CLARA FERREIRA ALVES


Entrevista com ANTÓNIO DAMÁSIO (excerto) por CLARA FERREIRA ALVES

 

É o mais reputado neurocientista nacional, há muito radicado nos Estados Unidos. Nesta conversa com Clara Ferreira Alves, essencial para compreender o mundo em que vivemos, vai da pandemia à política, da filosofia à ciência

CFA - Em Portugal, o documentário da Netflix “The Social Dilemma”, está a ser muito visto e comentado nas redes. Os efeitos nefastos das novas tecnologias, e o enriquecimento não à custa da venda dos nossos dados, mas do uso espúrio desses dados, obtidos através dos metrics, do código, para obter um efeito algorítmico. Para modular os cérebros e assim predizer os comportamentos e gostos, vendendo essa modulação aos anunciantes, às corporações. Enriquecimento através do controlo invisível das nossas mentes e vontades. Uma teia invisível e uma máquina de rendimento, que se sabe ser hoje a base do Facebook, por exemplo. Dinheiro. Pior e muito mais sofisticado do que o Big Brother. O que dirá um neurocientista disto? O nosso cérebro modificar-se-á? A nossa cognição será propriedade alheia?

 

AD “O nosso cérebro modificar-se-á primeiro do ponto de vista prático e depois do ponto de vista estrutural. As pessoas adotam certos comportamentos porque eles funcionam. É um problema maior que está ligado a outro, o de respeitar ou não respeitar os afetos. Uma das características do mundo de Silicon Valley e que tem a ver com a personalidade das pessoas que criaram esse mundo, é o cuidado extremo e atenção a tudo o que é cognitivo. Processos intelectuais, processos de recolha de dados. Processos de manipulação de dados e de raciocínio. Esses criadores têm querido fazer isto da forma mais pura, para obter o melhor e mais rápido resultado. O algoritmo triunfante. E menosprezando, não prestando atenção, ao que é afectivo. Não há qualquer dúvida, mesmo as pessoas que não têm preocupação com afetos e querem a razão dura e pura, a objetividade dos dados, fazem escolhas constantemente. E as escolhas têm a ver com os afectos. Sobrevalorizar os dados e menosprezar os afectos. É impossível compreender seres humanos sem prestar atenção ao afecto.”

 

CFA - O like seria uma expressão do afecto?

 

AD - “O like acabou desvalorizado, demonstrou que é impossível estar fora de uma valorização dos afetos. Silicon Valley, espalhado hoje por toda a parte, criou um desequilíbrio entre a vida e a biologia. Hoje, posso dizer com toda a confiança que não é possível ter consciência sem ter afeto. Durante muito tempo quis equilibrar esta minha ideia, antiga de 20 anos, com o raciocínio, como formas de controlar a mente humana. Não há consciência sem sentimento. A consciência começa no momento em que há sentimento. E não é possível compreender a consciência sem compreender a relação entre mente e corpo. E não só para os seres humanos. A mente existe e atua dentro do corpo. O sentimento é o processo biológico que permite essa relação. É um processo híbrido. O sentimento que temos do estado do nosso corpo. Acabei de escrever um livro, ‘Feeling & Knowing’, sobre isto. Escrevi vários ensaios sobre isto, e acabei de dar uma conferência sobre isto. Pedi aos editores para porem assim ‘Feeling & Knowing’, ‘&’ em vez de ‘e’. E todos estes problemas de que temos estado a falar, os animais, a pandemia, as tecnologias, têm a ver com a mesma coisa. Ascendemos à consciência através do sentimento. Mesmo os vírus e as bactérias têm uma competência intelectual. Uma competência evolutiva e reprodutiva, uma competência para a administração dos problemas. Devido à ligação entre o sistema nervoso e o corpo ascendemos à possibilidade de sentir. E de ter consciência. E aqui acontecem coisas muito boas e muito más. A boa é a capacidade de conquistar o mundo e transformá-lo à nossa medida. A coisa muito má é que podemos sofrer.”

 

CFA - Já posso dizer com toda a confiança que não é possível ter consciência sem ter afecto E em que categoria dos afetos entram as baixas e primárias paixões? A raiva, o ódio, a desconfiança, o egoísmo, a agressão, tão visíveis na política populista ou em grupos extremistas como o QAnon? Ou na linguagem das redes? Tão visíveis no nazismo? No estalinismo? Comportamentos que fazem as bactérias parecerem mais expeditas. Quase mais conscientes. As baixas paixões não conduzem ao nosso bem-estar nem à homeostase.

 

AD - “As bactérias têm certas vantagens, se quisermos ter humor. Essas paixões não são a negação da homeostase mas contribuem para a sua perda. Todas estas reações emocionais têm um lado protetor. O medo e a raiva são sistemas de defesa. Houve momentos históricos em que não seríamos capazes de nos defendermos do agressor sem o medo. Quando tens uma emoção como a gratidão ou a compaixão crias bem-estar, para ti e para os outros. Os benefícios destas emoções, do amor, da alegria são ótimos porque duram, são longos. Tem uma curva temporal longa. Na raiva e no medo a curva é rápida. Veja-se a inveja, que pode levar um adolescente, por exemplo, a competir melhor. Mas logo a seguir, entramos em perda. Precisamos cancelar o processo, que é autodestrutivo. A superabundância de raiva e medo geram esses fenómenos que apontaste. Fenómenos de destruição.”

 

CFA - Em Portugal, a vantagem competitiva da inveja não parece óbvia. Detestamos o sucesso alheio e reproduzimos o ressentimento, sendo menos competitivos.

 

 AD - “Mas esse processo tem a ver com o modo com as sociedades evoluíram, não é estático, tem enorme variação, como todas as descobertas da natureza. Nós não inventamos as soluções, foram inventadas para nós. As emoções fazem parte do armamentário para lidar com a vida à nossa volta. E têm longos anos. Não aparecem nas primeiras criaturas vivas. Nas bactérias há aspectos emocionais, mas não há emoções. E muito menos sentimentos. A emoção está ligada ao comportamento e não à mente, nada tem de subjectivo. O que é subjectivo é o sentimento. A emoção é a reacção ao exterior, é comportamento, e o sentimento é a forma como aprecias mentalmente a reacção. Até ao momento em que aparecem os primeiros sistemas nervosos, há cerca de 500 milhões de anos, a possibilidade de ter uma emoção existe, mas a possibilidade de sentir não existe. Um vírus não pode sentir. É improvável que a nossa vida mental, a tua e a minha e a de todos, exista há mais de 100 mil anos. Existem prolegómenos. A mente humana é muito recente.”

 

in EXPRESSO, 26 de Setembro, Edição 2500

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