O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

A inveja é um correlativo da hierarquia patraircal


AS RELAÇÕES DE PODER...


"Em definitivo, se o equilíbrio atual entre os sexos se baseia numa relação de Poder, que em parte se produz de uma forma inconsciente, é lógico que o questionamento dessa relação leve a desestabilização e crise, ou quanto menos, a uma certa inquietude angustiante, sem saber muito bem como manejar isso. São 5000 anos de cultura condensada nos egos masculinos (e femininos).

A hierarquia das diferenças leva inevitavelmente a invejas, umas vezes conscientes e outras muito inconscientes. Às mulheres foi atribuída “inveja do pénis” (já que fomos umas castradas sem sexo); mas também existe uma inveja nos homens do sexo feminino latente, porque apesar da repressão inexorável da nossa sexualidade, sempre houve algo do sexo feminino indelével: as mulheres sempre parimos. E como diz Laing, no fundo do inconsciente masculino também existe a inveja do útero: A ‘inveja uterina’ da função biológica feminina é possivelmente mais profunda que a conhecida inveja do pénis atribuída às mulheres.
Quando o equilíbrio baseado na relação de Poder fica desestabilizado, aflora do inconsciente masculino a inveja uterina latente.

A inveja é um correlativo da hierarquia. A inveja é um sentimento que impulsina ou facilita as relações hierárquico-expansivas, a rivalidade, a competitividade, etc., ou seja, a inveja é uma questão de Poder, das relações de Poder que estamos a questionar. Se na ‘inveja do pénis’ a mulher sentia ânsia de Poder, na ‘inveja do útero’ o masculino sente ânsia de conservação do Poder, medo de perdê-lo. Se nós mulheres temos que sair da perspetiva do Poder, deixar de viver nesse mundo para recuperar o nosso sexo e a maternidade, o homem tem que render o seu Poder e render as couraças levantadas contra o que ameaçava o seu Poder. Ainda que este tema seja abordado no Capítulo V, como adiantamento, isso na prática, como diz Laing, é uma dissolução de nossos egos. Com isso que digo, dá para reconhecer a imensa dificuldade que temos para recuperar a vida exilada no Hades. Como é lógico, a resistência será maior nos homens, porque é mais difícil render o Poder já conseguido que deixar de persegui-lo.

Mas também nós mulheres devemos derrubar um muro, já que o paradigma da salvação que constitui o nosso ego, é um pacto de submissão ao falo. Castradas, desprovidas de nosso sexo, nós mulheres precisamos do Poder do falo para sobreviver, e lutamos e rivalizamos por consegui-lo. Precisamos do Pai que nos salva. E como mudar de uma vez os paradigmas, se nem se quer podemos imaginar que há algo muito melhor que esse ideal de que casar-se com vestido branco com o homem da tua vida?

Por muito que no fundo saibamos que desde logo na vida quotidiana esse ideal não funciona, que o Poder do falo é omnímodo (total) e realiza-se com toda a violência necessária, tanto física como psíquica, (e isso não é uma frase senão fatos provados com as cifras do que chamamos eufemisticamente ‘violência doméstica’), é dizer que ainda que saibamos que é um ideal que se revelou como uma falácia, por não ter outra alternativa na nossa imaginação, encurraladas entre a compulsão de nosso ego e a pressão exterior da Ley, penhoramos a nossas vidas no intento de consegui-lo.

Porém por outra parte, somos criaturas que nos custa realizar nosso ego, nos custa ser os homens e as mulheres que nos ordenaram para sermos. Se estamos a escrever e a ler estas coisas, é porque também custa e produz sofrimento cumprir a ordem estabelecida. Temos que nos dar uma oportunidade, uma margem de confiança, deixar de lado as invejas e as ânsias de auto-afirmação social, e retirar um pouquinho as couraças para permitirmos ver o que é essa outra coisa que está no Hades.
(...)


O PECADO ORIGINAL

“É necessário reconstruir a contradição homem-mulher a partir da negação do corpo da mulher, e portanto aquilo que na Psicanálise tradicional aparece como enfermidade, neurose, desadaptação, etc. converte-se numa contradição material. A mulher encontra-se desde o princípio sem uma forma própria de existir, como se o existir da mulher já se encontrasse numa forma de existência (mulher, mãe, filha, etc.) que a negam enquanto mulher. Ser mãe significa existir e usar o corpo em função do homem, e por isso uma vez mais carecer de sentido e de valor do próprio corpo e da própria existência a todos os níveis.

Esta negação de si mesma esta interiorizada em níveis tão profundos que é como se as mulheres, ao longo de toda a sua história, não tivessem feito mais do que repetir esta história de autodestruição. Por consequência, o discurso sobre a violência masculina, sobre o vexame, a dominação, sobre os privilégios, etc. continuará sendo um discurso abstracto se não tivermos em conta o aspecto interiorizado desta mesma violência, a violência como autonegação, negação duma existência própria. A negação de si mesma é posta em marcha a partir do nascimento, a partir da primeira relação com a mãe, onde esta já não se encontra presente como mulher com o seu corpo de mulher, estando ali como mulher do homem e para o homem. (…)

O facto da menina viver a relação com a pessoa do seu sexo apenas através do homem, com essa espécie de filtro que existe entre ela e a mãe, é a razão mais profunda da divisão que encontramos entre uma mulher e outra mulher; nós as mulheres estamos divididas na nossa história desde sempre, não apenas porque cada uma de nós está unida socialmente ao marido, às e aos filh@s – este é apenas o aspecto visível da separação – a divisão dá-se a um nível mais profundo, ao não conseguirmos olhar-nos uma à outra, ao não sermos capazes de contemplar o nosso corpo sem termos sempre presente o olhar do homem. (…)

Num artigo em “L’Erba Voglio”… insistia na relação interrompida com a mãe, ou no mínimo deformada desde o começo precisamente porque a mãe não é a mulher, apenas “a mãe”, ou seja, a mulher do homem. Do facto de que a mulher não encontra na relação com a mãe o reconhecimento da sua própria sexualidade, do seu próprio corpo, procede depois toda a história sucessiva da relação com o homem como relação onde a negação de tudo aquilo que tu és, da tua sexualidade, da tua forma de vida, já se produziu.”

Lea Melandri, La Infamia Originaria (excertos),
citada por Cacilda Rodrigañez Bustos em El Assalto al Hades


2 comentários:

Anónimo disse...

É um abismo quando nos olhamos como individuos. A duras penas estou assumindo que não tive relação com minha mãe, idealizei, neguei que ela não tem capacidade de me amar. E como uma mãe pode não amar sua filha? Pode, quando está perde seu eu e sua alma. Eu mesma já estava indo por esse caminho, mas algo dentro de mim sempre soube que havia algo errado e não sou eu errada como me fizeram acreditar. Caminhei quebrada literalmente, me maltratando por anos e acreditando em uma mentira que contei pra mim mesma para sobreviver. E hoje como mãe, me reergo quebrada, mas lembro que sou mulher, rejeitada desde menina, mas me pego sempre pensando quem sou mesmo? Sinto que Lilith mantém minha chama acesa, porque estou só destroços. Um abraço Rosa, e sempre é bom passar por aqui. Bruna

rosaleonor disse...

uM GRANDE BEIJINHO MINHA QUERIDA E MUITA FORÇA APRA CONTINUAR!