Quem olha o que vemos quando nos olhamos num espelho?
"A fase chamada "stade du mirroir" (fase do espelho) pelo psicanalista Jacques Lacan aparece entre o 6º mês e o 18º mês: é o momento em que a criança percebe que a imagem que ele vê no espelho é "ele".
Já que o espelho é hoje em dia um objeto banal e omnipresente, esquecemos que foi ausente na maioria das vidas humanas. (...) É muito provável que nas sociedades sem espelhos, o "sentimento de si" constrói-se diferentemente que na nossa.
A fase do espelho é já uma forma de desdobramento. Acontece de forma simétrica para os membros dos dois sexos. Porém perto da idade de 6 ou 7 anos, as meninas cindem-se diferentemente dos meninos. O desdobramento é mais profundo e mais permanente. De forma não simétrica, eles tornam-se "olhadores" e elas "olhadas". Em muitas ocasiões, a partir desse momento a menina manterá com o seu espelho uma relação angustiante para não dizer neurótica. Não contente ao ver o que ela vislumbra de si, ela 'criticará' a sua aparência, porque não é mais a través dos seus próprios olhos que ela a vê senão através dos olhos interiorizados do outro, de muitos outros.
Em cada existência de mulher, existe um antes e um depois do desdobramento. Antes, não sabíamos. Éramos espontâneas. Acostumávamos coincidir bêtement (como o fazem os animais) com o nosso corpo. Corríamos, riamos, saltávamos a corda, rolávamos desde o topo da colina até abaixo(...) cantávamos a pleno pulmões. Agora, nos olhamos correr, rir, saltar... Nos tornamos, diz a lengua inglesa, self-conscious: há outr@ 'eu' que julga e mede o 'eu', algumas vezes gentilmente, porém muitas vezes duramente.
Num estúdio importante titulado Ways of Seeing o escritor de origem británica John Berger encontrou fórmulas poderosas para evocar o sentimento do desdobramento próprio às mulheres.
" Uma mulher deve constantemente vigiar-se a si mesma. Encontra-se permanentemente acompanhada por assim dizer pela imagem que ela tem de si mesma. Desde a sua mais tenra infância foi-lhe ensinado que tinha que vigiar-se a si mesma constantemente. Assim ela termina considerando o observador e a observada nela como dois elementos constitutivos porém distintos da sua identidade de mulher. Ela deve vigiar tudo o que ela é e tudo o que ela faz porque a maneira como os outros a percebem, e em última análise a maneira como os homens a olham, é da mais alta importância para o que costuma ser considerado "sucesso na vida". O seu próprio sentimento de ser é substituído pelo sentimento de ser se apreciar a si mesma através do olhar do outro".
Berger segue dizendo: "Os homens olham as mulheres. As mulheres olham-se a si mesmas sendo "olhadas" por eles. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres, senão também a relação das mulheres com elas mesmas. O observador no interior da mulher é masculino, a observada, feminina. Assim a mulher transforma-se em objeto -e mais particularmente em objeto visual, ou seja em imagem".
Reflets dans un oeil d´homme - Nancy Huston
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